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Leonardo Sakamoto

Herói não é Lula, nem Sérgio Moro. Herói é quem faz milagre para sobreviver

Leonardo Sakamoto

22/03/2016 09h53

Sigo não entendendo pessoas que têm heróis. Menos ainda quem elege políticos, juízes ou militares para essa categoria.

Por isso, trago novamente esta discussão, pedindo perdão a aqueles que mitificam outras pessoas ao invés de entenderem e assumirem seu próprio protagonismo.

Você pode admirar Luiz Inácio Lula da Silva, Sérgio Moro, Fernando Henrique Cardoso, Geraldo Alckmin, Marina Silva, Fernando Haddad, Jean Wyllys, Joaquim Barbosa, Aécio Neves, Dilma Rousseff. Até o Jair Bolsonaro. Mas nenhum deles deveria ser tratado para além daquilo que são ou foram – atores públicos, representantes políticos, magistrados.

Por isso, humor e críticas, mesmo que ácidas, a políticos e juízes deveriam ser encaradas de forma tranquila e não como declarações de guerra. Porque são diferentes de incitação à violência, ameaças e assédio – que configuram casos de polícia.

E, por favor, tenhamos senso crítico quanto aos funcionários públicos que usam fardas. Podem ser corajosos, mas não são necessariamente heróis.

E já que estamos esbanjando iconoclastia, isso também vale para religiosos, como padres e pastores, e comunicadores – como apresentadores de TV, jornalistas e blogueiros. Principalmente blogueiros, pois somos um bando de fuinhas.

Não canso de usar essa história como exemplo, mas herói é o Antônio que acorda às 5h da manhã, pega suas coisinhas e, com duas conduções, sai da periferia da periferia e vai até o bairro de Santo Amaro para vender café da manhã na rua. Depois, quando os clientes desaparecem, começa a trabalhar no serviço de pintor, bico que rende algo no final do mês e, sinceramente, não vale a pena. Mas como ele tem três crianças e uma mulher com câncer em casa, que luta há anos para não morrer na rede pública, pois como não tem acesso ao Sírio Libanês ou ao Albert Einstein, é o jeito. À noite, acende o fogo e começa a vender "churrasquinho de gato" no ponto de ônibus para completar a renda. Chega em casa cinco horas antes de ter que acordar novamente. Um dia pôs sua churrasqueira para conseguir algum em um final de semana lotado de corrida perto do autódromo de Interlagos. A Guarda Civil Metropolitana, contudo, levou tudo embora. Como ele ia trabalhar no dia seguinte? Sei lá. Superação. Heroísmo.

É claro que nenhum de nós quer ter a vida de merda de Antônio.

Antônio nunca sentirá o glamour das festas e recepções com caros vinhos e, sua mulher, quando teve um problema sério e quase perdeu o braço, não pegou helicóptero, mas sim um busão para ir ao pronto-socorro.

Não adianta dizer que ele é feliz, que tem Deus no coração, que a família o ama. Isso é apenas jogar purpurina em cima da vida de merda para que ela brilhe.

A sua vida, muito provavelmente, não terá um final feliz para ser levada às telas do cinema. Não irá vencer a pobreza do sertão de Pernambuco e virar presidente ou superar o racismo da sociedade norte-americana e virar presidente. Não ganhará reportagem especial no Fantástico.

É Antônio, mas podia colocar aqui uma relação de nomes, grossa como uma lista telefônica, de pessoas que aceitam a mesma batalha no dia-a-dia porque, se desistirem, morrem – e nunca ganharão uma medalha por isso.

Não foram criados em berço de ouro e se houvesse uma escala justa que pudesse comparar diferentes superações, esses trabalhadores e trabalhadoras fariam muitos de nossos heróis comerem poeira.

Pelo contrário, são tratados como restolho da sociedade, mão de obra barata, voto fácil e massa burra. Apesar de servir, alimentar, transportar e enriquecer a mesma sociedade.

Se usineiros já foram chamados por heróis, cortadores de cana são então quê? Deuses?

Esperemos que os livros de história e nós, narradores da contemporaneidade (não apenas os profissionais de comunicação, mas todos os que têm uma conta de rede social, um blog, uma rádio comunitária ou um jornal mural e, portanto, tão jornalistas quanto os outros), tenhamos a decência de registrar que não foram apenas presidentes, juízes, governadores, reis, ditadores, pilotos, jogadores de futebol, jornalistas, bispos e famosos, que fizeram a realidade do nosso tempo mas, sim, o conjunto dos carregadores de pedra, como diria José Saramago.

Na hora em que o nome de qualquer um desses milhões, cuja desgraça é apenas um detalhe e por isso mantém-se escondida embaixo do tapete, for retirado das entranhas da sociedade e gritado a plenos pulmões como alguém que merece ser um herói, não precisaremos mais eleger heróis. Pois cada um saberá que é o próprio herói de sua vida.

Pois heróis eleitos ou fabricados não são infalíveis. São apenas homens e mulheres com a mesma capacidade de errar como qualquer outro e com interesses pessoais.

Nessa hora, acredite, a vida será outra.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.