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Leonardo Sakamoto

Brasil: Erro das narrativas apocalípticas é não lembrar que há um amanhecer

Leonardo Sakamoto

24/03/2016 10h47

Julián Fuks, um dos expoentes da nova geração de escritores brasileiros, escreveu um artigo a pedido do jornal francês Le Monde sobre a crise brasileira. Ele autorizou a publicação, aqui no blog, antes do texto sair por lá. É uma análise à esquerda, que critica o governo e os protestos, e nos lembra, nesse período difícil, que, apesar das trevas, sempre há um amanhecer. Julián Fuks é autor de livros como A Resistência, Procura do Romance e Histórias de Literatura e Cegueira.

Erro das narrativas apocalípticas é não lembrar que há um amanhecer, por Julián Fuks

Um alarido ensurdece a cidade. Afasto-me da escrivaninha onde não tenho conseguido produzir nada, afasto-me deste texto que ainda não dispõe sequer de uma palavra, e observo o ruído intenso a se criar. Pela janela vejo sacadas ocupadas por homens e mulheres eufóricos, seus rostos brancos contorcidos pela raiva, seus olhos ofuscados pelo brilho das panelas que eles batem com alarde. Quero lhes pedir que parem, quero lhes dizer algo forte que ainda não me ocorre, uma ânsia de palavras me convoca, mas sei quanto é inútil falar. No Brasil das panelas, ouvir é uma virtude em falta. Este país que grita tem pouco ou nada a dizer, quer apenas emudecer tudo quanto lhe desagrade. No país das panelas, discordar é a ofensa mais grave – ninguém quer aceitar qualquer dúvida que possa abalar tantas verdades tácitas.

Pelas ruas passam carros igualmente lustrosos, e suas buzinas rugem ainda mais alto. Um jovem que passa de camisa vermelha ouve um insulto que meus ouvidos não alcançam. Pela cidade reverberam, sem que eu as ouça, centenas de agressões disparatadas, gritos histéricos de intolerância, gestos de uma violência desmesurada. É como se uma guerra se gestasse, cogito por um segundo e logo me arrependo, penso na Síria, na Nigéria, nos milhões de refugiados: há ainda no Brasil um amplo domínio da normalidade.

Foto: Luis Moura/Estadão

Foto: Luis Moura/Estadão

A cada semana, a cada dia, cada vez com mais intensidade, o alarido de panelas é que me alerta quando algo importante se passa. Caminho até a sala, ligo a televisão e é quase certo que verei a presidenta a discursar, a anunciar alguma nova medida desesperada, batalhando sua habitual falta de eloquência e tentando se mostrar ainda estável, ainda vivaz. Quando se faz entender melhor, quando o silêncio entre suas palavras não se alonga por tempo demais, ela acusa uma manipulação por parte do Poder Judiciário, acusa a parcialidade da grande imprensa, acusa o golpismo da oposição, afirma com clara preocupação que a democracia está sob ameaça. Em poucas horas, já sei, a nova medida será debatida com fervor por políticos tão exaltados quanto monocórdicos, suas acusações a ecoar os gritos binários das ruas, do "Fora Dilma! Fora PT!" ao "Não vai ter golpe!". Calado diante da televisão, me pergunto em que momento a política terá se tornado esta disputa pela voz que ressoe mais alto.

Nos últimos dias, o cerne da discussão não é um homem qualquer, é a figura central da política brasileira nas últimas décadas, é unanimemente seu maior personagem: Lula oscila a cada dia entre a prisão e o ministério. Tantas vezes vejo seu rosto, tantas vezes contemplo seu semblante tenso e cansado, que não posso senão me lembrar dos discursos enérgicos que dele ouvi tantos anos atrás. Penso num tempo de militância enfática, de idealismo, de lutas populares, um tempo em que a política não se resumia a esta batalha estéril. Penso no operário que prometia o fim da miséria, da fome, da desigualdade, que conversava com outras pessoas de panelas na mão – pessoas que não batiam panelas, mas nelas cozinhavam, para si mesmas ou para uma elite abastada. Penso nesse Lula de décadas passadas e me pergunto com alguma nostalgia onde andará. Quando ouço seus discursos de agora, sua voz a se inflamar contra a elite que o persegue, confesso que volto a sentir algum resquício da esperança daquele tempo, sem saber se devo ou não me envergonhar.

O país vive uma grave polarização, é o que afirmam tantos analistas autorizados, o país está dividido e não aguenta mais. Se está dividido e se trata de uma polarização ideológica, me ocorre então que projetos opostos deveriam estar em questão, que direita e esquerda deveriam estar em franco embate. Não é isso, no entanto, o que se ouve no clamor das ruas, não é isso o que se ressalta na barafunda de vozes que comentam a situação sem parar. No Brasil das discussões acaloradas, os ideais de esquerda foram silenciados pela urgência da crise, pela preservação de uma mínima estabilidade. No Brasil das discussões acaloradas, os discursos de esquerda parecem ter sido sequestrados – ou abafados pela potência e amplidão das muitas ameaças autoritárias.

A polarização que o Brasil vive, afinal, parece ter caráter bastante peculiar: a esquerda foi subtraída da equação e vivemos uma polarização entre a direita e o direito. Parte da massa que toma as ruas de verde e amarelo, bem-intencionada ou não, é incitada por alguns dos líderes mais abjetos e retrógrados, figuras sinistras a apregoar a prisão imediata e sumária de seus adversários, a abolição de um partido inteiro, por vezes até o retorno dos militares ao poder. São os mesmos congressistas que têm votado leis que ferem direitos elementares, que propõem a redução da maioridade penal, eliminam conquistas trabalhistas, revitimizam mulheres estupradas. Como espectador assustado, me surpreendo a cada vez ao ver como esta nova direita é amparada por grandes grupos midiáticos, a louvar um desejo de mudança que poderia ser muito legítimo, mas que agora abriga os anseios mais violentos e autocráticos.

Como espectador assustado, vejo como se desvia e se desvirtua uma oportunidade única. Aos poucos, numa sequência de decisões jurídicas questionáveis, uma investigação que poderia enfim combater a corrupção sistêmica que nos acomete, que romperia enfim a promiscuidade que se criou entre quase todos os partidos e as maiores empresas do país, converte-se em outra coisa. Converte-se, fica evidente no teor monotemático dos jornais, em uma perseguição implacável a figuras específicas, a um partido, tendo como fim a anulação das eleições e a destituição imediata da presidenta. Neste quadro, à esquerda sequestrada parece restar apenas a defesa melancólica e necessária de um Estado democrático de Direito – e esse é o grito tão pouco idealista que a massa de vermelho repete, com razão, pelas ruas. À esquerda sequestrada parece restar a mera preservação de um governo legítimo que, no entanto, já não consegue agir como um governo de esquerda há muito tempo – ou talvez nunca o tenha sido.

Pelo ruído das panelas e buzinas, do alto da janela onde me alcançam tantos gritos, por um ínfimo instante sinto como se vivesse um apocalipse. Logo me acalmo e penso melhor: o equívoco de todas as narrativas apocalípticas é não perceber que sempre houve um amanhecer depois das trevas, sempre houve um dia seguinte. Volto então à escrivaninha e me permito escrever sobre um futuro de discussões mais férteis, da luta contínua pelo fim das opressões e dos privilégios, um futuro em que ainda caibam a justiça e o idealismo.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.