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Leonardo Sakamoto

"O ódio. Eu não consigo, até agora, entender de onde vinha tanto ódio"

Leonardo Sakamoto

31/03/2016 13h38

"O ódio. Eu não consigo, até agora, entender de onde vinha tanto, tanto ódio."

A dúvida de Maria Aparecida bem caberia na polarização tacanha de 2016, em que deixamos de nos reconhecer como semelhantes simplesmente por pensarmos diferente, passamos a enxergar inimigos em cada esquina. Mas é mais antiga.

Durante as sessões de tortura realizadas no 36o Distrito Policial (local que abrigou a Oban e, posteriormente, o DOI-Codi, na capital paulista), durante a ditadura civil-militar, os vizinhos do bairro residencial do Paraíso reclamavam dos gritos de dor e desespero que brotavam de lá.

Tente dormir tendo, ao lado, um ser humano sendo moído em paus-de-arara, eletrochoques, "cadeiras do dragão" e tantos outros métodos criativos aplicados na resistência por militares e policiais. As reclamações cessavam com rajadas de metralhadora disparadas para o alto, no pátio, deixando claro que aquilo continuaria até que o sistema decidisse parar. Mas o sistema não parava. O sistema nunca para por conta própria.

A noite de Maria Aparecida Costa durou três anos e meio, dos quais dois meses torturada naquele local. "Fiquei presa ali", apontou para mim o primeiro andar do prédio quando estive com ela no local, há dois anos, para escrever um texto para cá, do qual resgato suas impressões.

A tortura firmava-se como arma da disputa ideológica. Era necessário "quebrar" a pessoa, mentalmente e fisicamente, pelo que ela era, pelo que representava e pelo que defendia. Não era apenas um ser humano que morria a cada pancada. Era também uma visão de mundo, uma ideia.

Ainda hoje, Cida tenta entender o que ocorreu. "Tinha mais alguma coisa. Claro que a justificativa era ideológica. Mas tinha mais alguma coisa. Porque eles sentiam prazer de verdade no que faziam. Prazer de verdade em torturar."

Talvez o ódio surgia, como lembra Cida, da sensação de poder. De fazer porque se pode fazer enquanto o outro nada pode.

tortura

O Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna DOI-Codi era integrado por membros do Exército, Marinha, Aeronáutica e policiais. E a metodologia desenvolvida durante esse período e a certeza do "tudo pode" continua provocando vítimas em outras delegacias espalhadas pelo país e nas periferias das grandes cidades, onde a vida vale muito pouco.

(E aos leitores com problemas cognitivos que não sabem que a terrível violência cometida pelo Estado tem uma série de agravantes em relação à terrível violência cometida por criminosos comuns, desejo que um dia vocês possam refletir sobre isso.)

Dizem que carrascos não podem pensar muito no que fazem sob o risco de enlouquecerem. Mas também dizem que os melhores carrascos são os psicopatas que gostam do que fazem. E se dedicam com afinco a descobrir novas formas de garantir o sofrimento humano. Muitos dos que fizeram o serviço sujo para a ditadura e passaram pelo prédio do DOI-Codi amavam sua "profissão".

Não acreditavam simplesmente estar em uma guerra. Se assim fosse, haveria protocolos internacionais proibindo o que foi feito. Muito menos em uma missão divina porque Deus, se existir, nunca ouviu os gritos que saíram de lá. O que havia nas celas era, para eles, a representação do mal. E o mal precisa ser extirpado.

O mal precisa ser extirpado. Tal qual ouvimos hoje: que há pessoas ou grupos que representam o mal e precisam ser extirpados. Eu mesmo já ouvi isso mais de uma vez: "você é um câncer que precisa ser extirpado". Na superfície dessa afirmação, há ódio. Mas se escavarmos um pouco, chegaremos ao medo e, em seguida, à ignorância sobre o outro.

Décadas depois, há quem tente provar que a história se repete sim, não como farsa, mas como delírio.

Tito de Alencar Lima, o Frei Tito, foi encontrado enforcado no dia 10 de agosto de 1974, durante seu exílio na França, como consequência da tortura que sofreu pelas mãos dos agentes da ditadura militar brasileira. Em 1969, ele foi um dos dominicanos presos pelo torturador Sérgio Paranhos Fleury, delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), acusados de apoiar as ações da resistência contra o regime. O calvário de Tito, da prisão ao suicídio, tornou-se um dos símbolos da luta contra a ditadura.

Trago trechos do testemunho de Tito à Justiça Militar, em 1969, em que conta como foram as sessões de tortura. O depoimento faz parte de ação movida pelo Ministério Público Federal contra os torturadores:

"Na quarta feira, fui acordado às 8 horas, subi para a sala de interrogatórios, onde a equipe do capitão Homero me esperava.

Repetiram as mesmas perguntas do dia anterior. A cada resposta negativa, ou recebia cuteladas na cabeça, nos braços e no peito.

Neste ritmo prosseguiram até o início da noite, quando me serviram a primeira refeição naquelas 48 horas. (…)

Na quinta- feira, três policiais acordaram-me à mesma hora do dia anterior. De estômago vazio, fui para a sala de interrogatórios. Um capitão, cercado por uma equipe, voltou às mesmas perguntas.

Vai ter que falar, senão, só sai morto daqui", gritou. Logo depois vi que isto não era apenas uma ameaça: era quase uma certeza.

Sentaram-me na "cadeira de dragão" (com chapas metálicas e fios), descarregaram choques nas mãos e na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo fosse decompor.

Da sessão de choques, passaram-me ao pau-de-arara. Mais choques, pauladas no peito e nas pernas cada vez que elas se curvavam para aliviar a dor.

Uma hora depois, com o corpo todo sangrando e todo ferido, desmaiei. Fui desamarrado e reanimado. Conduziram-me à outra sala, dizendo que passariam a carga elétrica para 230 volts a fim de que eu falasse "antes de morrer". Não chegaram a fazê-lo.

Voltaram às perguntas, batiam em minhas mãos com palmatórias. As mãos ficaram roxas e inchadas, a ponto de não ser possível fechá-las. Novas pauladas. Era impossível saber qual parte do corpo doía mais: tudo parecia massacrado.

Mesmo que quisesse, não poderia responder às perguntas: o raciocínio não se ordenava mais. Restava apenas o desejo de perder novamente os sentidos."

O golpe e a ditadura civil-militar ainda são temas que não fazem parte de nosso cotidiano em comparação com outros países que viveram realidades semelhantes e que almejam ser democracias. Por aqui, lidamos com o passado como se ele tivesse automaticamente feito as pazes com o presente. Não, não fez.

Como sempre digo, o impacto de não resolvermos o nosso passado se faz sentir no dia-a-dia das periferias das grandes cidades, em manifestações, nos grotões da zona rural, com o Estado aterrorizando, reprimindo e torturando parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica).

Cida é torturada e Tito morre novamente e novamente, todos os dias, no Brasil, sob outros nomes, crenças, gênero ou cor de pele. Normalmente, jovens, negros e pobres.

Neste 31 de março/1o de abril, 52o aniversário do golpe militar de 1964, desejo que a história daquele período continue a ser contada nas escolas até entrarem nos ossos e vísceras de nossas crianças e adolescentes a fim de que nunca esqueçam que a liberdade do qual desfrutam não foi de mão beijada. Mas custou o sangue, a carne e a saudade de muita gente.

Só dessa forma, poderemos garantir que os poucos milhares que hoje clamam por intervenção militar ou pela volta da ditadura continuem a serem vistos pelo restante da sociedade como mal informados, ignorantes ou insanos – e tratados com todo o carinho possível e paciência. Pois, talvez um dia, compreendam o que significa a liberdade que está diante de seus olhos olhos, mas que não conseguem enxergar.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.