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Leonardo Sakamoto

O Brasil é feito da resistência de gente anônima que apanha, mas fica em pé

Leonardo Sakamoto

13/04/2016 22h32

O Brasil é um rapaz que nasce, negro e pobre, no extremo da periferia e, apesar de todas as probabilidades contrárias, chega à fase adulta.

É um vendedor ambulante que sai de casa às 4h30 todos os dias e só volta tarde da noite, mas ainda arranja tempo para ser pai e mãe.

É a jovem que, mesmo assediada no supermercado onde trabalha, não tem medo de organizar os colegas por melhores condições.

É a travesti que segue de cabeça erguida na rua, sendo alvo do preconceito de "homens e mulheres de bem", sabendo que não consegue emprego simplesmente por ser quem é.

O Brasil é resistência. Não aquela cantada em prosas e versos, da resistência dos ricos e poderosos, que com seus grandes nomes deixaram grandes feitos que podem ser lidos em grandes livros ou vistos na TV.

Mas a resistência solitária e silenciosa de milhões de anônimos que não possuem cidadania plena, mas tocam a vida mesmo assim.

Se houve melhora na maneira como esse país trata os mais humildes, isso se deve à sua resistência, ou seja, sua mobilização, pressão e luta e não a bondades de supostos iluminados ou da esmola das classes mais abastadas. Até porque nossos "grandes líderes" naufragam em tempos de chuva ou desidratam em tempos de seca.

Resistência significa utilizar os meios possíveis e ao alcance de cada um para demonstrar sua insatisfação. Empresários resistem gastando dinheiro em suas causas e patos. Governo e oposição, usando a máquina pública e a paralisação do país em proveito próprio.

Mas quando trabalhadores, movimentos sociais, intelectuais e artistas prometem resistência, cruzando os braços em greves e ocupando ruas, avenidas e outros espaços, demandando direitos ou defendendo a democracia, a ação vira caso de polícia.

O pedido de investigação criminal movido contra Guilherme Boulos por afirmar que haverá resistência popular em caso de impeachment é um exemplo disso, como já disse aqui. O assédio a Juca Kfouri em frente à sua própria residência por jovens mascarados de classe média alta é outro. Sem contar as acusações infundadas contra Letícia Sabatella, Wagner Moura, Gregório Duvivier e tantos outros artistas, de se beneficiarem ilegalmente de recursos públicos. Tudo isso mostra que resistir é crime no país.

Um crime denunciado, investigado e processado, de forma sumária pelos tribunais da internet, cuja sentença é executada por qualquer um da miríade de malucos que acredita piamente estar em uma missão divina do bem contra o mal.

O macarthismo à brasileira está se instalando como ação sistemática de limpeza ideológica do pensamento progressista, espancando quem usa vermelho ou mesmo quem defende os liberais direitos humanos. Mas essa violência é novidade para setores da classe média urbana e branca. Pobre, negro, gays, lésbica, sem-teto, sem-terra sempre tiveram seus direitos violados em nome de um "bem" maior. E resistiram, na maior parte do tempo, sozinhos.

Sob a justificativa da "governabilidade" (palavra pichada com sangue e fezes nos muros do inferno), o governo federal fez alianças espúrias, apoiando forças econômicas e políticas que eram contrárias aos interesses populares, ignorando o suporte oferecido por esses mesmos movimentos para um mandato que significasse uma mudança de paradigma.

E nada indica que, se sobreviver à convulsão, irá fazer a "guinada à esquerda", mítico desejo da militância, que passa frio no barraco de lona na beira da rodovia, que convive com ratos em prédios ocupados em grandes cidades, que sente medo de ser despejada de sua terra tradicional, que vive as condições de trabalho precarizadas em nome do progresso. Mas que, mesmo assim, foi à rua e defendeu, não um governo ou um partido, mas uma ideia pela qual vale a pena lutar: democracia.

Se um país é a soma das histórias de sua gente, gente que apanha da vida e se mantém de pé, então esse país vale a pena.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.