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Leonardo Sakamoto

Tortura: Patrimônio cultural e histórico da "gente de bem" do Brasil

Leonardo Sakamoto

20/04/2016 11h22

Sabe de uma coisa? Acho gás de pimenta e gás lacrimogênio muito pouco. Tinha que pegar esses vagabundos que ficam pedindo moradia e terra e arrastá-los pelos cabelos até um camburão. No caminho da delegacia, dar umas boas cotoveladas e uns socos na boca do estômago para já deixar claro que não é brincadeira. Daí, na DP, com eles despidos, e depois de moer meia hora de porrada em cada um, enfiar uns capuzes e simular afogamento com baldes de água fria na cabeça. Então, meia hora de descanso no pau-de-arara para afrouxar a alma, com umas borrachadas no ânus e na vagina para não deixar dormir. Daí, mais uns 15 minutos de eletrochoques nos órgãos genitais. E se ainda estiverem conscientes, arrancar umas quatro ou cinco unhas com um bom alicate, terminando o serviço. Tenho certeza que o vagabundo nunca mais vai reivindicar nada.

Tortura. Funcionou durante a ditadura para manter os subversivos na linha e, hoje, funciona nas periferias das grandes cidades para lembrar qual o lugar dos mais pobres. É passado mal resolvido e institucionalizado, que continua nos assombrando.

Não sei se tenho mais calafrios com o deputado federal Jair Bolsonaro, conjurando um torturador na Câmara dos Deputados, ou com alguns dos autointitulados "homens e mulheres de bem" que sonham com a banda podre da polícia e milicianos e a tortura usada por eles como método de investigação e punição.

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A polícia não é a única responsável por manter a ordem do povo. O povo, devidamente treinado por instituições como escolas, igrejas, trabalho e a própria mídia, garante o seu próprio controle e o monitoramento no dia a dia. Quem sai da linha do que é visto como o padrão e o normal, leva na cabeça. Quem resolve se insurgir contra injustiças e foge do comportamento aceitável vira um pária. No limite, passa por julgamento em um tribunal popular, que ganhou forma e rapidez com o advento da internet. Sem essa vigilância invisível feita pelos próprios controlados, é impossível o grupo mais rico se manter no poder por tanto tempo e de forma aparentemente pacífica como ocorre por aqui.

Neste domingo (17), ocorreu a votação a votação do impeachment de Dilma Rousseff pela Câmara dos Deputados. Ofuscou uma data importante: os 20 anos do Massacre de Eldorado dos Carajás – quando 19 trabalhadores rurais sem-terra foram mortos e outras 60 pessoas ficaram feridas após uma ação violenta da Polícia Militar paraense para desbloquear a rodovia PA-150.

Corpos dos trabalhadores sem terra mortos pela polícia do Pará em uma sala do Instituto Médico Legal de Marabá (PA) - Foto Ana Araújo/Editora Abril

Corpos dos trabalhadores sem terra mortos pela polícia do Pará em uma sala do Instituto Médico Legal de Marabá (PA) – Foto Ana Araújo/Editora Abril

Tornou-se um escândalo internacional. Duas pessoas chegaram a ser condenadas por reprimir com morte a manifestação: o coronel Mario Colares Pantoja (a 228 anos) e o major José Maria Pereira Oliveira (a 154 anos), que estavam à frente dos policiais. Mas os responsáveis políticos na época, o governador tucano Almir Gabriel (que ordenou a desobstrução da rodovia) e o secretário de Segurança Pública, Paulo Câmara (que autorizou o uso da força policial), nunca foram processados. Outros 142 policiais militares que participaram da matança foram absolvidos. Isso sem contar que as denúncias de fazendeiros locais que teriam dado apoio para a ação policial ficaram por isso mesmo.

Foi Eldorado dos Carajás, mas poderia ter sido Ianomâmis, Candelária, Vigário Geral, Corumbiara, o Massacre de Maio… Membros de movimentos sociais, sindicalistas, ativistas de organizações da sociedade civil, lideranças indígenas, quilombolas e ribeirinhas, defensores dos direitos de comunidades pobres são torturados e mortos com frequência por aqui. Alguns casos são mais conhecidas e ganham mídia dentro e fora do país, mas a esmagadora maioria passa como anônimos e são velados apenas por seus companheiros.

E ninguém infla um pato por eles. Até porque, convenhamos, polícia, milícia e jagunços fazem o serviço em nome de muita gente "de bem" que tem ojeriza a sangue, mas acha que estorvos deveriam desaparecer da face da Terra.

Adoraria discordar de Oscar Wilde, como podem imaginar. Mas gosto de cita-lo quando trato desses casos: "Há três tipos de déspotas. Aquele que tiraniza o corpo, aquele que tiraniza a alma e o que tiraniza, ao mesmo tempo, o corpo e a alma. O primeiro é chamado de príncipe, o segundo de papa e o terceiro de povo".

De verdade, não sei de quem tenho mais medo. De políticos que defendem torturadores, da polícia que tortura ou do povo que tem orgasmos com os dois primeiros. Porque sabemos o que políticos e a polícia fazem. Mas não imaginamos até onde esse povo pode ir.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.