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Leonardo Sakamoto

Diz que é "pessoa de bem" e chama refugiado de terrorista

Leonardo Sakamoto

08/05/2016 09h35

Publiquei ontem um vídeo com depoimentos de professores sobre os desafio de atuar com crianças migrantes e, principalmente, refugiadas na rede pública municipal. Claro que pipocaram na internet impropérios, alguns dos quais no limite de questionar se crianças migrantes pobres pertencem à raça humana. Lembrei-me que já havia presenciado essa completa falta de empatia com o sofrimento alheio quando postei uma reflexão sobre o naufrágio e morte de milhares de africanos que tentam cruzar o Mar Mediterrâneo em direção à Europa.

Isso são exemplos de comentários na minha timeline – cortei sobrenome e avatar para não promover o bullying:

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"Muçulmano mentiroso que se faz de refugiado." Isso sem contar os indefectíveis comentários da linha "Tá com dó? Leva para casa!" – frase icônica da ignorância brasileira. Através dela podemos avaliar se o interlocutor merece respeito ou um abraço forte e solidário. É utilizada por pessoas com síndrome de pombo-enxadrista (faz sujeira no tabuleiro, joga ignorando regras mínimas de sociabilidade e sai voando, cantando vitória), normalmente diante do clamor para políticas voltadas àquela gente pobre, parda, perdida ou violada que habita as frestas das grandes cidades.

É só falar da necessidade de políticas específicas que garantam qualidade de vida para esse pessoal mas, ao mesmo tempo, respeitem seu direito de ir e vir e ocupar o espaço público que o povo vira bicho. Ou melhor, pombo.

Enquanto isso, em meio à ascensão da extrema direita na Europa e por aqui também, Londres dá o exemplo ao eleger o primeiro prefeito de uma capital europeia. O trabalhista Sadiq Khan, filho de uma costureira e de um motorista de ônibus que migraram do Paquistão para o Reino Unido, é advogado e militante dos direitos humanos e venceu os conservadores naquele país bolivariano e comunista. Deve ser culpa do Foro de São Paulo, por certo.

Refugiados e migrantes em geral devem ser beneficiários de política pública, com intervenção direta do Estado, única instituição com tamanho e legitimidade para garantir uma ação nacional, transnacional e de escala. Porque isso também inclui a garantia da autonomia econômica e social às famílias e educação de qualidade. Quem acha que o Estado é um simples entrave e não a forma que construímos para impedir que nos devoremos, tem dificuldade de entender que o acolhimento estrangeiros pobres não é caridade individual, mas sim a efetivação de compromissos assumidos internacionalmente por um povo.

Essa é a diferença que permite que essas pessoas possam ser prefeitas de uma grande cidade ao invés de escravos em alguma oficina de costura ou canteiro de obra.

Ao mesmo tempo, o Estado deveria ser o responsável por aprovar o mais rápido possível a nova lei brasileira de migração, que facilita a acolhida de estrangeiros de locais com instabilidade, guerras, violações a direitos humanos. O projeto, já aprovado no Senado e que está em análise na Câmara dos Deputados (PL 2516/15), repudia a xenofobia, tendo uma caráter mais humanitário que o Estatuto do Estrangeiro atual, um Walking Dead – morto, mas segue aí, atrapalhando.

Não é a panaceia para todos os problemas, mas um passo importante. Migrantes geram riqueza para seus novos países, mas a narrativa é de que são custosos para o poder público. Prova de que uma mentira contada mil vezes vira verdade.

Como disse aqui nesta semana, entendo que muita gente vê na TV, lê nas redes sociais, ouve de amigos e da família ou mesmo escuta na escola que migrantes em geral são um "peso" para a nossa sociedade, que sua presença é um dos motivos que levam à sobrecarga dos sistemas de atendimento de saúde, educação e assistência social, que eles roubam os empregos de brasileiros ou que o islamismo é uma religião de terroristas.

Antes de mais nada, ao longo da história, cristãos, judeus, muçulmanos mataram em nome do mesmo Deus – que não tem nada a ver com isso. Muito menos a esmagadora maioria das pessoas, que entendem o que está escrito nas sagradas escrituras das três grandes religiões monoteístas e vivem em paz. É fascinante o Novo Testamento falar da solidariedade aos estrangeiros e pessoas que se dizem cristãs caírem que nem pato (animal que está na moda) em abobrinhas de redes sociais, propagando preconceitos.

É normal que tenhamos medo daquilo ou daqueles que não conheçamos bem. Daquilo que é "de fora". Mas esse medo é infundado, equivocado, preconceituoso e, acima de tudo, perigoso.

Os migrantes vêm em busca de uma vida melhor, mas também atendendo a um chamado por mão de obra. Muitos fluxos migratórios também respondem à demanda por força de trabalho no Brasil. Determinadas ocupações já não são preenchidas apenas por brasileiros, como empregadas domésticas, costureiras, operários da construção civil e de frigoríficos. Todos estão produzindo riqueza no Brasil. Mas sob a perspectiva mal informada de parte população, contudo, eles vêm "roubar" empregos.

A história de nosso país é uma história de migrações, de acolher gente de todos os cantos do mundo (não tão bem, é claro – São Paulo, por exemplo, é a maior cidade nordestina fora do Nordeste e, ao mesmo tempo, ostentamos ainda um preconceito raivoso e irracional). Não podemos esquecer que a maioria de nossos antepassados foi explorada até o osso quando aqui chegou. Pois a esmagadora maioria de nós é descendente de migrantes. Nossos avós eram os forasteiros que sofriam nas mãos dos estabelecidos. Hoje, somos nós os estabelecidos que criticam os forasteiros.

Com exceção, é claro, dos descendentes de indígenas, que sofreram – e ainda sofrem – um processo lento de genocídio.

Creio que, em algum momento futuro, vamos olhar para trás e nos arrepender não só das grandes ignomínias – como a invasão de países em nome do petróleo ou o fomento a conflitos internacionais que geram refugiados – mas também da tradução dessa geopolítica estúpida no dia a dia. Pois a discriminação que surge como efeito colateral só torna tudo pior.

Ao mesmo tempo, os países pouco se importam com a origem do investimento internacional que aporta em suas fronteiras. Não questionam se usa véu, se gosta de samba, se é negro ou não acredita em Alá ou Jeová. Em alguns casos, nem se vem de uma ditadura sangrenta, da escravidão ou da lavagem de dinheiro. O capital é livre para circular. Já os trabalhadores são barrados em fronteiras e morrem afogados ao tentar atravessa-las. E, quando, conseguem refúgio, são chamados de terroristas, sofrem violência, são ameaçados e mortos.

E os países vão se tornando reféns do medo dentro de seu próprio território. Medo criado, na maioria das vezes, por si mesmos, a bem da verdade. Medo que não é bom para a dignidade da maioria das pessoas, mas serve muito bem ao interesse de uma minoria que lucra com essa segregação.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.