Topo

Leonardo Sakamoto

"Não reclame, trabalhe" - As frases amadas por cães de guarda do status quo

Leonardo Sakamoto

20/05/2016 10h43

"Se me ferrei a vida inteira, todo mundo tem que se ferrar também."

A frase representa o melhor da filosofia "Para o Buraco, Eu Não Vou Sozinho", muito conhecida desde que o primeiro hominídeo andou de pé, tropeçou e se agarrou no colega para não ir sozinho ao chão, mas que vem se aprofundando aqui, no Brasil de 2016.

E, é claro, temos variações:

"Quando era pequeno, não tinha merenda na escola e mesmo assim não morri de fome e me formei. Por que esses estudantes preguiçosos não calam a boca e sentam a bunda na carteira?"

ou

"Se tive que trabalhar desde cedo e, hoje, sou uma pessoa com bom caráter, também acho que criança deveria trabalhar para não cair na vagabundagem."

ou

"Sempre usei vestido comprido para não atiçar ninguém na rua. Quem essas garotas que nem perderam o cheiro de leite pensam que são ao sair de pernas de fora? Elas acham que vão mudar o mundo, que vão acabar com o machismo?"

ou

"Passe livre? Eu sempre paguei busão até poder comprar um carro em prestações. Que esses inúteis paguem também."

e ainda

"Trabalhei a vida inteira e nunca tive uma casa própria. Agora, vem um bando de desocupado e invade um terreno para chamar de seu? A polícia tem que descer o cacete nesse povo para aprender que patrimônio só surge do suor e do trabalho."

Fantástico! Nem as pessoas que usam crianças para ganhar dinheiro no semáforo ou os donos que mantém terrenos vazios para a especulação imobiliária seriam tão virulentos assim. Nada como uma sociedade doutrinada para servir de cão de guarda, não?

Já eu prefiro este formato:

"Se sou um covarde e não tenho coragem de lutar pelo que acredito ser uma vida digna, permanecendo na ignorância (que é um lugar quentinho) e preferindo ruminar silenciosamente entre os dentes a minha infelicidade, quero que o mundo faça o mesmo. E quem tentar mudar as coisas que se foda."

Tá faltando amor no mundo. Tá faltando interpretação de texto. Da bíblia. Porque fica parecendo que o Nazareno, que era de luta, mandou que todo mundo sofresse pacas por aqui para poder ganhar um mimo na outra vida. Particularmente, não acredito nem nesta vida, quanto mais na outra. E ele era pacifista e ser pacifista não significa morrer pacificamente sem enfrentamento.

Quem pensa assim, não entende, nem desenhando, que moradia, alimentação, educação, saúde são direitos fundamentais – por enquanto, é claro. Tem que verificar o que o governo Temer é capaz de fazer.

E, quando alguém fala em direitos humanos, então? Há outro alguém para gritar: "E esses vagabundos pagam impostos para poder ter direitos humanos?"

Que vem do mesmo esgoto de onde surge coisas do tipo: "A pessoa é pobre porque não estudou ou trabalhou".

Pois acham que basta trabalhar e estudar para ter uma boa vida e que um emprego decente e uma educação de qualidade é alcançável a todos e todas desde o berço. E que todas as pessoas ricas e de posses conquistaram o que têm de forma honesta.

Meritocracia? Ah, meus amigos, minha amigas, meritocracia no Brasil é hereditária.

Essas pessoas acreditam que todas as leis foram criadas para garantir Justiça e que só temos um problema de aplicação. Não se perguntam quem fez as leis, o porquê de terem sido feitas ou questiona quem as aplica.

Quando vejo pessoas ocuparem um terreno ocioso, não consigo deixar de ficar feliz porque aquela terra ou imóvel, finalmente, poderá ter uma função social. Com exceção do dono do imóvel, de outros donos de imóveis ociosos para a especulação e de seus representantes políticos, legais e econômicos, ou das pessoas que pertençam às mesmas classes sociais desse pessoal já citado ou é por eles pagos para defender seus interesses, é difícil entender a razão de ter gente que sai atacando uma ocupação de sem-teto ou de sem-terra, fazendo o papel de soldado não-remunerado.

"Por que se acham melhores do que eu?"

Não é uma questão de melhor ou pior. E sim de aceitar bovinamente um destino horrível em uma sociedade que, apenas teoricamente, não é de castas. Ou lutar para sair dessa condição. Ah, mas é contra a lei. A Constituição Federal diz que toda a propriedade deve ter função social. Qual a função social de cultivar vento ou criar ratos e baratas?

A Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que a propriedade é um direito, o que concordo, mas que moradia também é. Se a elite de um país pressiona para que apenas um direito seja respeitado e o governo faz vistas grossas, cabe ao povo se rebelar contra a situação.

Valores passados cuidadosamente e ao longo do tempo vão colando em nossos ossos e nos transformando em guerreiros da causa alheia.

Resolvi recuperar e atualizar essa reflexão que já havia publicado aqui porque vejo esse tipo de defesa se multiplicar. Não ganhamos nada com isso, pelo contrário, perdemos. Como cidadãos, como seres humanos.

A polícia que, não raro, desce borracha em manifestantes não é a única responsável por manter a ordem do povo. O povo, devidamente treinado por instituições como escolas, igrejas, trabalho e a própria mídia, garante o seu próprio controle e o monitoramento no dia a dia.

Quem se insurge contra o que nos mantém acorrentados a uma vida de merda acaba ouvindo "Não reclame, trabalhe". Porque, afinal de contas, "só o trabalho liberta".

Quem sai da linha do que é visto como o padrão e o normal leva na cabeça. Quem resolve se voltar contra injustiças e foge do comportamento aceitável vira um pária. Sem essa vigilância invisível feita pelos próprios controlados, é impossível uma classe econômica se manter no poder por tanto tempo e de forma aparentemente pacífica como ocorre por aqui.

Como sempre digo, não sei de quem tenho mais medo: dos políticos, da polícia ou desse povo. Porque sabemos o que a polícia faz e desconfiamos dos políticos por natureza. Mas não temos imaginação suficiente para desenhar até onde esse povo pode ir.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.