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Leonardo Sakamoto

Cristofobia e a santa cruzada brasileira pelo direito ao preconceito

Leonardo Sakamoto

10/06/2016 09h33

No começo era uma cara de nojinho aqui, um balançar negativo de cabeça ali, um tremelique seguido de um sinal da cruz e um deus-que-me-livre-e-guarde. Tudo muito discreto como recomenda a hipocrisia brasileira.

Mas como determinados grupos cismavam em achar que podiam ter os mesmos direitos dos "homens e mulheres de bem" desta gloriosa nação, os preconceitos – que sempre existiram – escancararam-se para fora do armário. Afinal de contas, era preciso defender os valores da "tradicional família brasileira" – não a indígena, que segue sendo devidamente dizimada em um genocídio a conta-gotas, mas aquela, branca, cristã, rica e feliz, que aparece em comerciais de margarina.

– Casais gays e lésbicos insistem em andar de mãos dadas na rua? Devem apanhar até morrer.

– Uma jovem gosta de sexo e tem vários parceiros? Estupro corretivo nela.

– Negros entram por cotas em uma universidade pública? Assédio para que se lembrem que nunca serão iguais a nós.

– Trabalho escravo de migrantes bolivianos? Cala a boca e trabalhem. O que importa é o preço da roupa.

– Uma empregada domésticas reclamando de direitos? Demissão, claro. Como ela ousa? Sempre a tratamos como alguém praticamente da família.

A insurgência de determinadas minorias em direitos levaram a contra-ataques ferozes daqueles que, historicamente, nunca tiveram que lutar para serem considerados cidadãos – ou mesmo gente. E para que essa reação a fim de manter tudo como está fosse palatável para o resto da sociedade, vendeu-se a ideia de que os carrascos são vítimas e as vítimas são carrascos.

– Gays e lésbicas querem converter nossos filhos à crença homossexual através da ideologia de gênero, precisamos impedir isso!

– É necessário ensinar às meninas que apenas as mulheres que não se dão ao respeito e que agem como vagabundas é que são estupradas.

– O Brasil sempre foi um país com igualdade de direitos e condições. As cotas vieram tumultuar e acabar com o processo meritocrático.

– A vida desses migrantes era muito pior em seu país bolivariano. Aqui, damos casa, comida e um trabalho. Deviam ser gratos.

– É um absurdo que uma família que sempre ajudou uma empregada seja colocada na Justiça. A classe média não tem como pagar direitos trabalhistas.

A ideia de inverter o lugar de vítimas e carrascos é feita diariamente por setores da mídia, por certos "humoristas", por escolas, em empresas, clubes, igreja. E é através da religião, aliás, que estamos inaugurando uma nova etapa nesse processo. Pois não basta inverter as bolas no dia a dia, precisamos normatizar tudo isso.

"Hoje, o cristão, principalmente o evangélico, tem suas ações tolhidas por algumas opiniões. Você tem uma minoria sendo tolhida de seus direitos, como liberdade de expressão e, até mesmo, às vezes, liberdade de culto. O cristão, hoje, não pode falar qualquer coisa relacionada à homoafetividade que ele é caracterizado como um homofóbico. Ou seja: falou que é contrário à prática da homossexualidade, ele é homofóbico. Você tem essa questão sendo muito aprisionada."

A declaração é de Eduardo Tuma (PSDB), vereador da capital paulista, que conseguiu aprovar com a ajuda de partidos do governo e da oposição o "Dia de Combate à Cristofobia".

Pobres cristãos… Tão frágeis e indefesos diante dos malditos gays e lésbicas!

Os direitos humanos são como uma complexa colcha em que um retalho (direito) termina quando começa o outro. E todos eles seguem costuradinhos para fazer um tecido único. Ou seja, a liberdade de expressão, que é um dos desses retalhos, não é absoluta, não pode ser usada para incitar violência contra a dignidade e a integridade de outras pessoas – como, não raro, tem sido feito em alguns templos e igrejas.

Sabemos todos como a "prática da homossexualidade" (sic) tem sido condenada como pecado mortal. E sabemos que não é a mão do pastor ou do padre a ferir e matar, mas a sobreposição do discurso de ódio ao longo do tempo que torna-o quase uma ordem. Ou um desejo de Deus.

E não é questão de seguir o livro sagrado do cristianismo. É uma questão de poder e hegemonia. Porque se a bíblia diz "Não se deite com um homem como quem se deita com uma mulher; é repugnante" (Levítico 18:22) também impede a cobrança de juros ("Não lhe darás teu dinheiro com usura, nem darás do teu alimento por interesse", Levítico 25:37) e condena quem come certos frutos do mar ("De todos os animais que há nas águas, comereis os seguintes: todo o que tem barbatanas e escamas, nas águas, nos mares e nos rios, esses comereis. Mas todo o que não tem barbatanas, nem escamas, nos mares e nos rios, todo o réptil das águas, e todo o ser vivente que há nas águas, estes serão para vós abominação", Levítico 11:09 e 10).

Mas, ao contrário de gays e lésbicas, ninguém dá porrada em banqueiro ou taca pedra em quem pede camarão ao alho e óleo.

Os tempos são outros. Os grupos sociais que, até agora, reinaram sozinhos sobre a sociedade terão que abrir espaço para que os excluídos vejam seus direitos respeitados ao invés de se fazerem de vítimas e tentarem usar o poder público para referendar seus discursos de exclusão. A verdade é que tudo muda.

Tanto muda que a data escolhida para o "Dia de Combate à Cristofobia" foi o 25 de dezembro. Nesse dia, aproveitando o solstício de inverno, celebrava-se o "Nascimento do Sol Invencível", em homenagem ao deus persa Mitras. Apenas em 354 d.C. a data foi apropriada pelo papa Libério para nela celebrar o nascimento de Jesus de Nazaré.

Quem sabe, no futuro, a data seja realmente usada para comemorar a fraternidade de cristãos e não-cristãos ao invés da incitação do ódio. Pode demorar, mas vai acontecer. Para desespero de muita gente.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.