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Leonardo Sakamoto

No frio de SP, a ironia é tão bem cuidada que brota belas flores de cinismo

Leonardo Sakamoto

20/06/2016 00h29

Um leitor educadamente criticou o fato de usar muita ironia nos meus textos.

Pedi desculpas se isso o agredia. Mas também dividi a responsabilidade com o fato de morar em São Paulo.

Onde o Largo da Forca, no qual condenados eram pendurados pelo pescoço durante o século 19, hoje se chama Praça da Liberdade.

Onde o principal cemitério municipal fica na Rua da Consolação.

Onde uma das ruas mais chiques, caras e elegantes da cidade, frequentada por uma elite por vezes acusada de preconceito, homenageia um baiano, o doutor Oscar Freire.

Onde o poder público acaba com um complexo de campos de várzea, nos quais a população mais pobre jogava futebol, para transformá-lo em um lugar sintonizado ao rico entorno. E, ao final, ainda mantém o nome de Parque do Povo.

Mas também onde certos grupos conservadores, que nunca se importaram com a vida ou a dignidade de quem não tem teto, usam as mortes deles pelo frio para atacar a prefeitura, que se considera progressista.

E onde a prefeitura, que se considera progressista, usou justificativa conservadora, como evitar a "refavelização", para explicar a retirada de materiais que o povo de rua usa para se proteger em dias de frio intenso.

(O prefeito que se desculpou, disse ter sido interpretado e citado fora de contexto e reclamou do ano eleitoral. Mas para alguém morrer de frio neste momento, algo deixou de ser feito muito antes. Pelo poder público. Pela sociedade.)

Enfim, caro leitor, a ironia não é monopólio paulistano. Mas, por aqui, ela nos define.

E, de tão fina e delicada, floresce às vezes como um belo cinismo.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.