No frio de SP, a ironia é tão bem cuidada que brota belas flores de cinismo
Um leitor educadamente criticou o fato de usar muita ironia nos meus textos.
Pedi desculpas se isso o agredia. Mas também dividi a responsabilidade com o fato de morar em São Paulo.
Onde o Largo da Forca, no qual condenados eram pendurados pelo pescoço durante o século 19, hoje se chama Praça da Liberdade.
Onde o principal cemitério municipal fica na Rua da Consolação.
Onde uma das ruas mais chiques, caras e elegantes da cidade, frequentada por uma elite por vezes acusada de preconceito, homenageia um baiano, o doutor Oscar Freire.
Onde o poder público acaba com um complexo de campos de várzea, nos quais a população mais pobre jogava futebol, para transformá-lo em um lugar sintonizado ao rico entorno. E, ao final, ainda mantém o nome de Parque do Povo.
Mas também onde certos grupos conservadores, que nunca se importaram com a vida ou a dignidade de quem não tem teto, usam as mortes deles pelo frio para atacar a prefeitura, que se considera progressista.
E onde a prefeitura, que se considera progressista, usou justificativa conservadora, como evitar a "refavelização", para explicar a retirada de materiais que o povo de rua usa para se proteger em dias de frio intenso.
(O prefeito que se desculpou, disse ter sido interpretado e citado fora de contexto e reclamou do ano eleitoral. Mas para alguém morrer de frio neste momento, algo deixou de ser feito muito antes. Pelo poder público. Pela sociedade.)
Enfim, caro leitor, a ironia não é monopólio paulistano. Mas, por aqui, ela nos define.
E, de tão fina e delicada, floresce às vezes como um belo cinismo.
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