Topo

Leonardo Sakamoto

Venha para a "Igreja do Sakamoto" e ganhe seu passaporte diplomático

Leonardo Sakamoto

29/06/2016 18h24

O governo Michel Temer atendeu à nova solicitação de passaportes diplomáticos feita pelo pastor R.R. Soares e por sua esposa Maria Magdalena Soares, ambos da Igreja Internacional da Graça de Deus. Ele já havia concedido o documento, em maio, para o pastor Samuel Ferreira e sua esposa Keila, ambos da Assembleia de Deus. Samuel é investigado na Lava Jato por suspeita de lavagem de dinheiro de propina para Eduardo Cunha.

Em 2013, o governo Dilma Rousseff atendeu ao mesmo pedido feito por Valdomiro Santiago de Oliveira e Franciléia de Castro Gomes, lideranças da Igreja Mundial do Poder de Deus. Ambos se somaram à renovação, em 2011, dos passaportes diplomáticos do fundador da Igreja Universal do Reino de Deus, Edir Macedo, e de sua mulher, Ester Eunice Rangel Bezerra, e, novamente, do líder da Igreja Internacional da Graça de Deus, R.R. Soares e sua esposa.

O documento facilita a vida dos viajantes. Há países com os quais o Brasil tem acordo para isenção de visto a passaportes diplomáticos. Em alguns aeroportos internacionais, há filas especiais para quem é portador do documento. Isso sem contar que as polícias lá fora tendem a ser mais brandas com quem carrega esse passaporte. Ou seja, torna desnecessário enfrentar as filas para conseguir autorização prévia de viagem como os restante de nós, que não possuímos interlocução direta com o divino.

Mas por que receberam esse benefício se os pastores e bispos supracitados não são autoridades, diplomatas ou servidores públicos em missão especial fora do país? A explicação dada é de que o decreto número 5978/2006, que regulamenta a concessão desse tipo de passaporte, abre uma brecha para que outras pessoas possam portá-los em "função do interesse do país".

Após pipocarem, no início de 2011, denúncias de que filhos e netos do ex-presidente Lula também foram agraciados com o mimo, o Ministério das Relações Exteriores publicou uma portaria (número 98, de 24 de janeiro de 2011), estabelecendo normas e diretrizes para concessão do documento a essas pessoas comuns desde que demonstrassem que estavam em "missão ou atividade continuada de especial interesse do país, para cujo exercício necessite da proteção adicional representada pelo passaporte diplomático". O "efetivo interesse" deve ser analisado pelo Itamaraty.

Não é de hoje que igrejas neopentecostais estão expandindo sua atuação para outros países. E a possibilidade de realizar visitas rápidas para tocar o rebanho é de interesse de pastores e de seus jatos particulares.

Contudo, até que se escreva o contrário na Constituição Federal, o Estado brasileiro é laico. Atenção galera que faltou à aula de interpretação de texto: laico, não ateu, ou seja, cabe nele todas as religiões, mas sem privilegiar nenhuma.

Religião não é produto cuja exportação deva ser promovida pelo Estado. Qual é, portanto, o "interesse do país" que está sendo cumprido com essas concessões?

Corre como justificativa de que isso nada mais é que isonomia, uma vez que o documento é concedido a cardeais da Igreja Católica.

Contudo, o Vaticano é um Estado soberano. Os cardeais elegem um mandatário desse Estado dentre eles mesmos, que governará de forma vitalícia. Portanto, se a Santa Sé achar por bem conceder um privilégio para os seus cardeais, melhor seria emitir um passaporte diplomático do Vaticano e não solicitar que o governo brasileiro faça isso. Até porque, como já foi dito, pelo menos na teoria, o Estado brasileiro é laico.

Olha, já tive a mala barrada no raio-X de aeroporto por conta de uma caneta. Que, como todos sabemos, é mais forte que a espada. E, com o passar dos anos, à medida em que ganhava cada vez mais "cara de terrorista", fui me acostumando a ser parado. Na dúvida, a culpa é sempre deste japonês cabeçudo. Qualquer coisa estranha entre os meus badulaques vira arma de destruição em massa. Em viagens internacionais, quando chego à Imigração, digo aos que me acompanham para irem em frente e não olharem para trás sob o risco de virarem estátua de sal.

– O senhor é brasileiro mesmo? (Não, tô mentindo porque tá na moda ser brasileiro)

– O que quer dizer este visto do Paquistão (que, como todos sabemos, é lar de terrorista) no seu passaporte? (Você não conta para ninguém? Significa que eu estive lá)

– E esse visto da Colômbia? (Ah, não, esse ai é de mentirinha. Ganhei no chiclete Ploc – os meus contemporâneos entenderão.)

Como não acredito em encarnação, não tenho a chance de, na próxima tentativa, nascer rico, bonito, ariano e com um rosto confiável. Não significa que estes não passem por perrengues. Mas certamente bem menos que gente que tem cara escolhida por diretor de novela das 21h para ser de bandido.

Enfim, já havia sugerido aqui no blog fundar uma igreja. Como passei no cartório e minhas primeiras opções…

Igreja Universal do Reino de Deus
Igreja Mundial do Poder de Deus
Igreja Internacional da Graça de Deus

… já haviam sido registradas, fiquei com a Igreja Global da Simpatia do Sakamoto.

Que, entre suas regras, constará a veneração incondicional a Monty Phython, um evangelho montado com roteiros de House of Cards, Game of Thrones e Breaking Bad, a maconha como erva sagrada, a socialização dos meios de produção, a livre identidade de gênero e orientação sexual e a promessa de banda larga para todos e todas. E será uma sociedade matriarcal – porque o patriarcado já se provou uma desgraça.

Dessa forma, acho que consigo um passe livre do governo brasileiro.

Afinal, jornalismo é "interesse do país" também, não?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.