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Leonardo Sakamoto

Por que você me traiu?

Leonardo Sakamoto

04/08/2016 15h52

Dada a quantidade de xingamentos, calúnias, campanhas de difamações, ameaças e até casos de violência física sofridos por conta do que escrevo neste espaço e nos outros a que tenho acesso, minhas preocupações sempre foram maiores diante dos ataques daqueles que estão no outro polo ideológico.

Contudo, cada vez mais me intrigam as reações daqueles que compartilham comigo visões de mundo diante de minhas opiniões que estes consideram equivocadas. Porque, por vezes, essas reações são mais raivosas do que aquelas que vêm de quem sistematicamente me detesta.

Poderíamos pensar em um sentimento de traição. Do tipo: Eu acreditei naquele japonês cabeçudo e safado e apoiava o que ele escrevia até que, num belo dia, ele mostrou toda a sua vil natureza ao defender que ovo de gema mole era o ó do borogodó. Quando todos sabemos que as pessoas só deveriam comer ovo de gema mole.

Ou mesmo de projeção. Pois há quem siga blogueiros, youtubers e afins para que, a partir de uma percepção inicial de afinidade em comum, transfira-se a estes terceiros a tarefa de analisar a realidade ou tomar decisões. Convenhamos que dissolver-se na manada é uma sensação quentinha e acolhedora, em que – inimputáveis e anônimos – deixamos de ser responsáveis pelos nossos próprios atos.

Seja qual for a razão, quando não cumpro o que determinada pessoa esperava de mim (de acordo com uma construção feita por ela do que seria eu, uma vez que nunca prometi nada a ninguém), há quem, decepcionada, range os dentes. Afinal de contas, de acordo com esse pensamento limitado, se a pessoa se diz de esquerda, ela deve pensar das formas X, Y e Z, nem mais, nem menos, e não se desvirtuar nunca desse plano. Apesar desse plano não ser consensual, ter nuances gigantescas e apresentar concepções diferentes e contradições.

Por exemplo, se me autointitulo progressista, não posso criticar um partido político que se diz de esquerda ou uma política pública amada pela esquerda. Muito menos questionar educadamente declarações de membros de grupos minoritários em direitos. Ou mesmo ter hábitos de consumo que não condizem com a imagem franciscana montada por determinados setores da esquerda – com o grande apoio de parte da extrema direita.

Há uma espécie de bíblia invisível que serve de guia para muita gente – bíblia com a qual trilham o seu caminho e supervisionam o de outros. E quando um membro da comunidade se desvia do caminho esperado por muitos, o pecado é mais mortal do que se um infiel fizesse isso. Porque o infiel é um ignorante, enquanto o membro da comunidade já foi apresentado à luz e, ao ignora-la, comete um crime contra tudo o que é divino. Mas, por tudo o que é sagrado, nós podemos discordar! E a água não irá se tornar sangue e pragas ocuparão as ruas caso isso aconteça.

Sinceramente, eu prefiro perder público-leitor do que trair convicções pessoais ou reflexões que acho corretas. Repito, acho corretas. Se elas estão ou não, só o diálogo respeitoso com o contraditório irá dizer. Da mesma forma, não tenho nada a dever com qualquer partido ou agrupamento político – sejam eles à esquerda ou à direita, e sempre defendi que devem ser denunciados em caso de desvios. E não há grupo ou classe social que, por ser oprimido, deva ganhar salvo-conduto para oprimir quem está pior do que eles.

Também não acredito que, em nome da prevalência do meu ponto de vista, eu tenha o direito de divulgar informações que não são verídicas. Nos últimos dias, alertei uma série de colegas jornalistas e organizações sociais quanto ao risco de publicizar certas notícias que não estavam respaldadas em provas e fatos confiáveis. Recebi como resposta que eu estava fazendo o jogo do sistema e que a mídia tradicional faz o mesmo. Ou seja, uma notícia é correta se eu concordo com ela. Se discordo, está errada. E foda-se os fatos.

E assim vamos caminhando da barbárie para a decadência sem passar pela civilização.

Entendo que muita gente esteja frustrada com a situação do país. E que as batalhas travadas em suas guerras particulares contra a injustiça e por dignidade estejam esgotando suas energias. Mas se desistirmos do diálogo como forma de buscar saídas coletivas, não vamos a lugar algum. A estrada para o inferno está asfaltada de certezas absolutas.

A sociedade avança como uma família que segue de mãos dadas, querendo atravessar uma rua movimentada. O mais jovem, forte e esperto do grupo poderia chegar do outro lado em um piscar de olhos, ele tem as condições e a consciência disso. Mas não irá. Voltará com os demais quando aparecer um carro em alta velocidade ou um caminhão desgovernado. Terá que respeitar o ritmo do indivíduo mais lento ou doente. Ou todos atravessam juntos ou a família nunca chegará ao outro lado.

Neste momento, nuvens escuras se aproximam do horizonte e prenunciam uma longa tempestade que pode cobrir o mundo e durar um bom tempo. Mas a tempestade passa e, no final das contas, as coisas mudam. Lentamente, mas mudam, com base em muito diálogo e muita luta. É cansativo, é desolador, mas é a condição humana.

Não, isto não é uma resposta para ninguém ou sobre algum caso em especial. Mas a falta de empatia é um mal que acomete a todos, da direita à esquerda, sem que encaremos isso como um problema. Pena.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.