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Leonardo Sakamoto

Furtos de valor insignificante: Não gostamos de Justiça, mas de vingança

Leonardo Sakamoto

11/08/2016 10h57

Um homem foi detido após furtar dois frascos de filtro solar em uma unidade das Lojas Americanas, no município de Marília, em 2014. Apesar do juiz ter atendido o pedido da Defensoria Pública, para que respondesse ao processo em liberdade, ele seguiu preso por seis meses. Agora, como informa a coluna de Mônica Bergamo, na Folha de S.Paulo, desta quinta (11), ganhou na Justiça uma indenização de R$ 26.400,00 por conta do "erro". O governo do Estado de São Paulo afirmou que vai recorrer.

Pode-se dizer que a pessoa ficou presa por falha do poder público, mas o caso encobre um problema profundo. Ainda mandamos pessoas para o xilindró por roubar coxinhas em supermercados, por exemplo.

Manter alguém afastado da sociedade por conta de um furto de valor tão insignificante, além do claro custo social e humano, representa um peso aos cofres públicos. Cadeia deveria ser usada como último recurso, para quem representa um perigo para a sociedade, e não a principal alternativa de punição e ressocialização adotada. Uma pessoa que for mandada à prisão por conta de uma questão tão idiota sairá de lá com ódio da sociedade e do Estado e, utilizando o que aprendeu nessa escola de crime, irá à desforra.

Isso me lembra outras histórias que já trouxe aqui. Por exemplo, o pedreiro Ademir Peraro havia roubado coxinhas, pães de queijo e creme para cabelo do supermercado Dia%, em São Carlos. O total do furto: R$ 26,00. Como a cidade fica no interior do Estado de São Paulo, onde alguns arautos da justiça reacionária têm mantido pessoas flagradas por furto famélico ou de baixo valor no xilindró, podemos imaginar que esse também seria o destino de Ademir. Contudo, os seguranças do mercado resolveram fazer justiça com as próprias mãos.

Ele foi levado até um banheiro e agredido com chutes, socos e um rodo e deixado trancado, definhando, até tarde da noite. Depois, buscou-se socorro, mas já era tarde: acabou morrendo por hemorragia interna e traumatismos.

Na época, o supermercado disse que a responsabilidade era da terceirizada – quem se lembrou do projeto de lei que amplia a possibilidade de terceirização e é apoiado pelo governo Michel Temer e está para ser aprovado no Congresso ganha uma coxinha.

O Supremo Tribunal Federal vem desconsiderando muitos furtos de pequeno valor como crime. Essa conduta não gera uma obrigação para todos os juízes e desembargadores de instâncias inferiores, mas sinaliza o que pode acontecer com o caso se ele subir ao STF. E é uma tentativa da corte de mostrar que não são apenas os ricos e que têm acesso a advogados que conseguem decisões favoráveis no tribunal. Contido, a Suprema Corte também já deu decisões desfavoráveis a quem cometeu pequenos furtos quando o objetivo não era saciar a fome.

O princípio da insignificância pode ser aplicado quando o caso não representa riscos à sociedade e não tenha causado lesão ou ofensa grave. Po exemplo, roubar um desodorante ou dois frascos de protetor solar. Tipo de coisa que não deveria ser punido com cadeia. Seja pela inutilidade da punição, pelo seu custo ou mesmo pelo déficit de humanidade que isso representa.

Não creio que prender alguém por conta de dois quilos de carne vai ajudar em sua reinserção social ou mesmo evitar novos furtos, o que mostra uma sanha mais punitiva do que educativa. Mesmo a abertura de um processo é, a meu ver, acintoso, pois força o Estado a gastar tempo, recursos humanos e dinheiro em algo cuja solução passaria pela geração de empregos e criação de estruturas de assistência.

Ninguém está defendendo quem erra ou comete crimes. O que está em jogo aqui é que tipo de Estado e de sociedade que estamos nos tornando ao acreditarmos que punições severas para coisas ridículas (mesmo reincidentes) têm função pedagógica.

Vamos ser honestos: tendo como base nossa tradição e legislação patrimonialistas, isso serve para deixar claro que a integridade do patrimônio segue acima da dignidade da vida. E que não gostamos de Justiça, mas de uma boa vingança mesmo.

Seguem algumas punições idiotas:

Ademir
Assassinado por ter furtado coxinhas, pães de queijo e creme para cabelo de um supermercado. O pedreiro foi levado a um banheiro, agredido com chutes, socos e um rodo e deixado trancado, definhando. Morreu por hemorragia interna e traumatismos.

Ademir – 
Assassinado por ter furtado coxinhas, pães de queijo e creme para cabelo de um supermercado. O pedreiro foi levado a um banheiro, agredido com chutes, socos e um rodo e deixado trancado, definhando. Morreu por hemorragia interna e traumatismos.

 

Sueli - 
Condenada pelo roubo de dois pacotes de bolacha e um queijo minas em uma loja.

Sueli – 
Condenada pelo roubo de dois pacotes de bolacha e um queijo minas em uma loja.

 

Valdete
Condenada a dois anos de prisão em regime fechado por ter roubado caixas de chiclete. Teve um habeas corpus negado pelo Supremo Tribunal Federal, pois o princípio da insignificância não se aplicaria, afinal não era para saciar a fome.

Valdete
 – Condenada a dois anos de prisão em regime fechado por ter roubado caixas de chiclete.

 

Franciely
Acusada de ter roubado duas canetas mesmo após ter mostrado o comprovante de pagamento por ambas em um hipermercado.

Franciely
 – Acusada de roubo de duas canetas mesmo após ter mostrado o comprovante de pagamento por ambas em um hipermercado.

 

Maria Aparecida -
Mandada para a cadeia por ter furtado um xampu e um condicionador em um supermercado. Perdeu um olho enquanto estava presa.

Maria Aparecida -
 Mandada para a cadeia por ter furtado um xampu e um condicionador em um supermercado. Perdeu um olho enquanto estava presa.

 

Uma pessoa em situação de rua foi linchado pelo dono de um supermercado, seus empregados e moradores do bairro, em Sorocaba (SP), após frutar um xampu nesta quarta (26). Ele estea internado com afundamento no crânio.

Um homem em situação de rua foi espancado pelo dono de um supermercado, seus empregados e moradores, em Sorocaba (SP), após furtar um xampu. Ele foi internado com afundamento do crânio.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.