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Leonardo Sakamoto

Você é expulso de sua cidade e ainda bate palmas para o "progresso"?

Leonardo Sakamoto

23/08/2016 19h46

Quando a ocupação de determinados espaços interessa às classes que detém o poder econômico, elas elaboram mitos e criam heróis.

Para impor seus objetivos por meio do aparelho jurídico e administrativo do Estado, são construídos suportes de legitimação que mostrem que os seus próprios interesses são, na verdade, interesses de todos e, principalmente, daqueles que vão pagar o pato.

Aliás, pagar o pato vai se tornar uma constante por aqui.

Pois fazem você acreditar que o que é bom para eles é bom para você.

No campo, a construção desse suporte ideológico culminou em slogans como "Terra sem homens para homens sem terra" (que, além de tudo, era machista…), utilizado pelos verde-oliva, mas que estava presente já nos discursos de Getúlio Vargas. O slogan tinha o objetivo de transmitir a ideia de que a Amazônia é um grande deserto verde, desabitado. Contudo, uma olhadinha rápida demonstra a falácia presente na utilização desses discursos, uma vez que terras almejadas pelos novos empreendimentos agropecuários e extrativistas eram e são, na verdade, habitadas por populações indígenas, ribeirinhas, quilombolas, posseiros e colonos.

O que esse slogan encobre é que a Amazônia não é e nunca foi um vazio e que a imagem de "deserto verde" é uma construção que serve às forças econômicas interessadas em ocupar a região.

Afinal de contas, como todos sabemos, se é um deserto, não tem ninguém. E passar por cima de "ninguém", não é crime. Certo?

"Terra sem homens para homens sem terra."

Ou "Bairro com apenas pequenas casas para gente sem bairro."

Só não explicam que não é qualquer "gente", mas apenas aquela que tem dinheiro no bolso.

A especulação imobiliária, freada a contragosto pela crise econômica, mas que segue mais viva do que nunca, vem transformando as grandes cidades.

Já citei o ensaio "O Fausto de Goethe: A Tragédia do Desenvolvimento", de Marshall Berman aqui, mas vale retomar, pois cai como uma luva. Fausto vendera sua alma em troca de experimentar as sensações do mundo. Mas o diabo não é o Lúcifer da cristandade, não representa o mal em si, mas sim o espírito empreendedor capitalista e burguês.

A mentalidade que fomenta Fausto ("destruir para criar") é a realidade em constante movimento (Mefistófeles perguntava a ele se Deus não havia destruído as trevas que reinavam no universo para poder criar o mundo).

No meio do caminho estavam Filemo e Baúcia, um casal de idosos.

Eram um empecilho para os planos do empreendedor Fausto e precisavam ser removidos. Quando Mefistófeles queima a casa da dupla, assassinando-os, não quer Goethe provar a sua maldade, mas expor exatamente o contrário: joga-se o empecilho fora criando a ideia de que o mal (o casal idoso) precisa ser extirpado para que a sociedade crescesse.

Caem os limites morais. O desenvolvimento não possui padrões éticos, além da ética que cria para si mesmo.

As lembranças da desocupação forçada do Pinheirinho ou dos incêndios nas favelas de São Paulo duram na cabeça da classe média até que empreendimentos bonitos fiquem prontos no lugar. Males a serem extirpados em nome do progresso e do futuro.

Fico preocupado com uma cidade que passa por cima do seu passado, associando-o, de forma equivocada, a algo ruim ou insignificante no intuito de avançar. E avançar. E avançar. Para onde? Pouco importa.

O que importa é que o movimento de mudança seja constante. E que alguém ganhe com isso.

Falar sobre a política higienista urbana no Brasil é chover no molhado. Afinal de contas, as empreiteiras e os especuladores imobiliários, historicamente, doaram recursos de campanha, emprestaram parentes para cargos públicos, influenciaram o cumprimento e o não cumprimento de regras, como planos diretores. Ao mesmo tempo, quando são abertas as contas eleitorais, vemos – novamente – a influência do cimento na eleição de muita gente.

Esta eleição, com a proibição de doações por empresas, promete ser diferente. A ver.

Nos últimos anos, o governo brasileiro inundou o país com bilhões em recursos para a construção, com o objetivo de modernizar a infra-estrutura e erguer moradias, girando a economia.

Só que "esqueceu" de uma coisa: com o mercado imobiliário aquecido, a busca por áreas urbanas para a incorporação leva à expulsão de outros grupos, normalmente os mais pobres. Se a Justiça considerasse sempre a função social da propriedade para tomar suas decisões, como está previsto na Constituição Federal, a história seria diferente e a sociedade seria ouvida.

O bom é que, em se tratando do dinheiro de cimento, o poder público nunca me decepciona, sendo ele PMDB, PSDB, PT, PSB, PP, federal, estadual ou municipal, em qualquer lugar.

Quem ganhava, mantinha o cimento a tiracolo. Ou, melhor: quem ganhava continuava no bolso dele.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.