Topo

Leonardo Sakamoto

O Brasil pós-impeachment deve ser um país mais violento e autoritário

Leonardo Sakamoto

29/08/2016 19h08

Apenas em uma republiqueta mequetrefe, um vice-presidente (que se diz um jurista especializado na Constituição Federal) se junta ao presidente da Câmara dos Deputados, um notório corrupto que possui mais dólares ilegais na Suíça do que estrelinhas visíveis no céu, e agem à luz do dia para articular a destituição de uma presidente do cargo, assumir seu lugar, aplicar uma agenda de redução do Estado e trepanação dos direitos trabalhistas e previdenciários (que não foi e nunca seria eleita pelo voto popular) e parte da sociedade ainda aplaude, achando que essa bela passada de mão em sua bunda é o suprassumo da consolidação democrática.

O fato é que, independente do nome que você queira dar à criança, impeachment, golpe ou paçoca, tivemos uma conspiração.

Acho que o governo Dilma foi ruim, como qualquer morsa letrada que tenha passado por este blog, nos últimos anos, conseguiu perceber pela leitura dos meus textos. Mas o pior é que, como até morsa supracitada entendeu, boa parte dos senadores que estão inquirindo Dilma, nesta segunda (29), não conseguem explicar nem o que são os decretos orçamentários e por que eles constituem crime, quiçá justificar por que conspirações e democracias não combinam.

Ao final dessa guerra nuclear política, vão sobrar apenas baratas em uma realidade ultraconservadora pós-apocalíptica. Pois os dois partidos que eram a maior esperança do país e em torno do qual a democracia brasileira se consolidou nos últimos 20 anos, finalmente garantiram (pela ação ou inação) a Destruição Mútua Assegurada que nem os Estados Unidos e a União Soviética foram capazes de ousar durante a Guerra Fria.

E o receio é que, em 2018, baratas assumam o poder.

A classe política é responsável pela situação a que chegamos, com toda a corrupção, incompetência e ignorância que minou a credibilidade de instituições. Compra da Reeleicão, Mensalões, Trensalões, Lavas-Jato e a maioria dos escândalos, que permanece longe dos olhos do grande público.

Mas, mesmo assim, atacar mortalmente a democracia, é jogar fora a criança com a água suja do banho. São os ambientes democráticos os responsáveis por garantir que diferenças sejam reconhecidas e minorias em direitos sejam ouvidas, tornando possível a vida em sociedade e não a violência como saída. Na prática, sabemos que isso não funciona muito bem, mas é apenas em um ambiente democrático que a própria democracia consegue mudar seus rumos e corrigir-se.

Em dias como hoje, contudo, circulam pela rede mensagens pedindo o fechamento do Congresso. Pessoas decretando a inutilidade não só do parlamento, mas também da própria atividade política, que (teoricamente) deveria ser uma das mais nobres práticas humanas. Outras solicitando que se encontre um "salvador da pátria" que nos tire das trevas, sem o empecilho de pesos e contrapesos. Ou que Jesus volte.

Pessoas que, em sua maioria, são muito jovens para terem ideia do que estão falando porque não viveram a desgraça da ditadura. Ou, em sua minoria, que sabem muito bem do que estão falando e querem, patologicamente, essa desgraça de volta.

Nesse contexto, qualquer pessoa com posicionamento político contrário à corrente, hoje, hegemônica da política tem sido duramente criticado. Ter opinião virou crime, defender um ponto de vista agora é delito, abraçar uma ideologia é passível de morte.

Quando convicções políticas ou ideológicas acabam sendo escondidas por medo de retaliação violenta por parte de desconhecidos ou, pior, de amigos, algo está muito errado em um país. Quando a escolha da cor de uma camiseta deixa de ser uma questão estética e passa a ser de garantia de integridade física e psicológica, algo está muito errado em um país. Quando crianças mimetizam o comportamento de seus pais e isolam amiguinhos porque os pais deles votaram em um candidato diferente do de seus nas últimas eleições, algo está muito errado em um país.

Em resumo, políticos, mídia, empresários e parte da sociedade conseguiram a proeza de dar espaço aos que defendem que "fazer política é escroto". Ou seja, ao invés de tentarmos melhorar a política, reinventar a democracia, a saída é negar tudo o que ela representa e buscar saídas rápidas e, não raro, autoritárias.

Pior, caminho para o enriquecimento ilícito. Espalha-se a percepção de que quem se engaja na política, partidária ou não (porque muitos tontos fazem questão de resumir toda política à partidária), tem sempre interesses financeiros.

Chico Buarque estava no plenário do Senado para dar apoio à Dilma Rousseff em seu derradeiro discurso como presidente, durante seu interrogatório no processo de impeachment. É direito dele. Por conta disso, circulam nas redes sociais que ele foi pago para isso, pelo caixa do Partido dos Trabalhadores ou via recursos da Lei Rouanet.

Quando leio essas coisas tenho aquele sentimento de vergonha alheia, que dá um comichão e retesa o corpo em desespero pela ignorância do outro.

Muita gente com dificuldade cognitiva grave não consegue entender que a vontade de participar dos desígnios da pólis ou do país não ocorre apenas por ganho pessoal, mas por ideologia. E ideologia está em toda parte, inclusive e principalmente, entre aqueles que dizem que não a possuem. O problema, segundo o tão maltratado Paulo Freire, é se sua ideologia inclui ou exclui seu semelhante da dignidade.

O parlamento deveria ser o centro da vida política do país e não um estábulo de interesses pessoais. Mas a roda-viva da terra arrasada agora gira por conta própria.

O problema é que alguns grupos que vivem à sombra dos partidos, de um lado e de outro, se alimentaram desse processo. Eles não querem diálogo, querem sangue. Quanto pior, melhor.

Partidos acharam que estavam reunindo as forças ao seu lado para a guerra. O problema é que, seguindo a toada, não vai sobrar partido para contar história.

Se é que eles ainda existem.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.