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Leonardo Sakamoto

Pobre polícia, pobre governo: Acham que é possível cegar uma ideia

Leonardo Sakamoto

01/09/2016 22h14

Recebemos com triste regularidade notícias de que manifestantes, repórteres ou fotógrafos perderam a visão ou foram feridos nos olhos por conta da ação irresponsável da polícia militar ao reprimir protestos em espaços públicos. Não todo protesto, é claro, apenas aqueles que estão em desacordo com os interesses do governo estadual de plantão. Caso contrário, o que se vê é uma chuva de selfies.

Bombas que liberam estilhaços e balas de borracha parecem ser distribuídas com gosto com o intuito de causar o maior dano possível à população. Nesta quarta (31), a estudante Deborah Fabri, de 19 anos, teve um dos olhos perfurados por estilhaços de bomba lançada pela polícia ao protestar contra o impeachment de Dilma Rousseff, na capital paulista.

Deborah Fabri, que teve uma perfuração no olho esquerdo durante ato contra o impeachment. Foto: Jefferson Ricardo/Futura Press/Folhapress

Deborah Fabri, que teve uma perfuração no olho esquerdo durante ato contra o impeachment. Foto: Jefferson Ricardo/Futura Press/Folhapress

E se o poder público que comanda as forças de segurança sabe das consequências desse tipo de ação e não altera a sua forma de atuação, então não é possível chamar esses casos de acidentes. Pelo contrário, são propositais. Em outra palavra, o poder público tem, sistematicamente, roubado a visão da população como punição para quem resolve exercer sua cidadania e se manifestar de forma contrária à sua opinião. Mas também roubado a visão de profissionais de imprensa que estão lá para garantir a transmissão dos fatos e a circulação de informação de qualidade.

Como foi o caso do fotógrafo Sérgio Silva, considerado o único culpado pela Justiça paulista por ter sido atingido por uma bala de borracha que lhe tirou a visão. 

Não consigo parar de pensar na razão dos olhos acabarem sendo alvos preferenciais. Talvez seja por conta de sua fragilidade. Ou talvez pelo seu simbolismo. E se os agentes do poder público, inconscientemente, procurarem pelos olhos para incapacitar manifestantes e jornalistas achando que, dessa forma, fecharão sua janela para o mundo?

Daí me lembro de uma história contada por um antigo professor: um jornalista, já caído no chão, teve a mão esmagada por um coturno da ditadura civil-militar. Como resposta, ironizou, dizendo que não escrevia com as mãos.

A Polícia Militar pode cegar manifestantes e jornalistas. Mas isso fará apenas com que fique cada vez mais claro, para essas vítimas e nós mesmos, como nosso próprio governo adota uma pesada censura através da violência de Estado. Da mesma forma, como o mesmo governo rasga os direitos fundamentais a fim de calar a boca daqueles que querem simplesmente exercer sua cidadania.

Meia dúzia de manifestantes que espalham lixo nas ruas, põe fogo em pneus e quebram vidros de agências bancárias são exatamente isso, meia dúzia de pessoas, e não representam uma manifestação inteira. São usadas como pretexto para calar e cegar.

Como isso termina, todos já sabem. Pode levar mais tempo, mas nada disso sairá impune. Porque não se cala e não se cega uma ideia.

Pobre polícia, pobre governo. Acham que o povo escreve só com as mãos e enxerga apenas com os olhos.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.