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Leonardo Sakamoto

Indústria da multa? Diante da loucura do trânsito de SP, tá multando pouco

Leonardo Sakamoto

29/09/2016 14h34

Obrigado às gerações de gestores municipais, estaduais e federais que elaboraram políticas voltadas a beneficiar o transporte individual em detrimento ao coletivo, seja para deslocamento municipal, regional e interestadual.

Obrigado aos tecnocratas que decidiram por incentivar financeiramente parte da população a trocar seus bólidos a cada ano a fim de suprir as frustrações do dia a dia sob a justificativa de geração de empregos ao invés de usarem esses recursos na criação de postos de trabalho para a fabricação e veiculação de ônibus, trens, bondes e na reestruturação da malha urbana para acolher ciclistas e pedestres.

Obrigado aos políticos em geral pela falta de ações para descentralizar o desenvolvimento econômico, forçando moradores, principalmente os mais pobres, a cruzarem a cidade ao invés de poderem trabalhar, estudar e se divertir perto de casa.

Obrigado imensamente à indústria automobilística. Sem vocês e suas campanhas publicitárias caríssimas seria impossível ao paulistano compreender a principal regra de nossa cidade: quem não possui um carro é a merda do cavalo do bandido.

Obrigado a você consumidor que pega o carro para ir até a padaria na esquina, tira fina de ciclista porque acha que a rua pertence aos motores a combustão e acha que andar a pé ou de transporte público não condiz com sua classe social.

E obrigado a você eleitor que corre com seu possante, transformando-o em uma arma, e depois reclama da "indústria da multa". E, ao invés de analisar seu próprio comportamento e refletir sobre as prioridades da vida, xinga a redução de velocidade máxima na cidade e tapa os ouvidos quando os jornais trazem que grandes cidades do mundo também estão reduzindo seus limites.

Graças a todos e todas, conseguimos o feito de transferir a cidadania das pessoas para os automóveis. Eles têm mais direitos que nós, apesar de não contarem com vontade própria.

Nós, paulistanos, ou melhor, o Povo do Horizonte Marrom nos Dias Frios, nos refestelamos em ar condicionado potente, bancos confortáveis e um aparelho de som master-blaster double stereo high quality que tem que ser forte para esconder o barulho da buzina do lado de fora. Acreditando, piamente, que não morremos a cada dia com a poluição de nossa própria ignorância e nos tornamos menos humanos pela perda de empatia com quem anda sem motor.

Vamos comemorar! Ouça um musiquinha relaxante, talvez de novos artistas da MPB, no trânsito. E, se não for o motorista, leia uma biografia. Não se preocupe, há tempo. Todo o tempo do mundo.

E entorpecido pela promessa vazia da liberdade dos comerciais de TV que vendem sonhos na forma de carros em 60 vezes, aproveite para esquecer que os minutos que você ganha no trânsito não compensam uma vida.

Vida que, enjaulada no trânsito, não é vida.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.