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Leonardo Sakamoto

Temer diz que tungada em pobre é coisa séria e Constituição se vira na cova

Leonardo Sakamoto

19/10/2016 08h37

É bastante revelador, apesar de nada surpreendente, Michel Temer afirmar que impor um freio ao crescimento dos investimentos públicos, que afetará a qualidade da educação e da saúde públicas, é a medida legislativa mais séria e responsável desde a Constituição Federal de 1988. A declaração foi dada a empresários em visita ao Japão ao ser cobrado por uma redução dos custos para negócios no país.

Ele poderia ter enumerado uma miríade de projetos que foram aprovados desde 1988 e contribuíram com a distribuição de renda, a redução da injustiça social, a estabilização econômica ou o combate à fome, seja na área social, seja na área econômica. Mas preferiu exaltar sua própria proposta que, em nome da estabilidade fiscal para pagamento de juros da dívida pública, vai impactar a qualidade de vida dos mais pobres por uma geração, preservando os mais ricos.

Não só isso, mas essa medida dita séria e responsável bate de frente com a própria Constituição de 1988, ao negar a efetivação de princípios ali presentes que afirmam que o Estado deve garantir um mínimo de dignidade a todos os brasileiros.

A medida da qual ele trata, a Proposta de Emenda Constitucional 241, já aprovada em primeiro turno na Câmara dos Deputados, vai limitar o aumento dos gastos públicos nos próximos 20 anos. O aumento da destinação de recursos em gastos públicos, como educação e saúde, tem ocorrido acima da inflação nas últimas décadas exatamente para responder às demandas sociais presentes na Carta Magna de 1988 e, consequentemente, tentar reduzir o imenso abismo social do país. Se o reajuste tivesse sido apenas pela inflação, anualmente teríamos um reajuste de custos e o tamanho da oferta de serviços não cresceria, permanecendo tudo como estava.

Se a qualidade do serviço público segue, mesmo assim, insuficiente para a garantia da dignidade da população, imagine quando novos investimentos para além da inflação forem cortados. Educação e saúde, até hoje, eram atreladas a uma porcentagem do orçamento (o montante da saúde, em nível federal, cresce baseado na variação do PIB, e o da educação, deve ser de, pelo menos, 18% da receita). Agora, a regra vai mudar.

Como o governo está propondo um teto para a evolução das despesas públicas baseado na variação da inflação (ou seja, sem crescimento real), precisará restringir, a partir de 2018, o que é gasto nessas áreas pois não poderá cortar de outros lados protegidos, como o salário de deputados federais, senadores, ministros e presidente.

Promulgada em 5 de outubro de 1988, nossa Constituição Federal não é perfeita. Longe disso. Mas, olhando para trás, é incrível como os legisladores conseguiram que o respeito aos direitos mais básicos dos brasileiros estivesse presente no texto final como está. Não temos sido competentes para por em prática muita coisa que está lá dentro, seja pela falta de regulamentação, seja pelo não cumprimento da letra escrita. Mas, aí, já é outra história.

Ou seja, o problema da Constituição não é estar ultrapassada. Foi nunca ter sido efetivada.

Temos presenciado Michel Temer, seus ministros, nobres parlamentares e até juiz de altas cortes defendendo uma revisão profunda da Carta Magna para a remoção de determinados entraves que impedem o desenvolvimento desta nação. Leia-se como "entraves" os instrumentos para proteger os mais vulneráveis, por exemplo, em nome de um suposto "bem-estar" da maioria.

Há setores do empresariado e seus garotos de recados no Congresso Nacional que querem retalhar a Constituição ao seu interesse. E alguns fazem guerra aberta contra ela no dia a dia. Com a diminuição de sua autonomia real frente ao Poder Executivo, os parlamentares foram concentrando sua atividade no ato de fazer emendas à Constituição. Matérias infraconstitucionais são alocadas dentro da Carta Magna a torto e direito.

Lobistas que sussurram nos corredores do Congresso, cutucam daqui e dali, visando a mudanças que diminuam a proteção ao trabalhador. Outros pressionam pela revisão das regras na área fundiária, reforçando a necessidade de se garantir o direito de propriedade mesmo sem nenhuma função social. Noves fora, grupos religiosos que sonham transformar o país em uma teocracia, proibindo a efetivação de direitos já previstos em 1988.

No atual contexto, e por mais profunda que seja sua crise de legitimidade, ninguém foge da democracia representativa. Nem a extrema esquerda, nem a extrema direita. E, por mais que a Constituição tenha virado uma colcha de retalhos, segue sendo de vanguarda em um país que, nem de longe, e apesar das conquistas, conseguiu efetivar direitos fundamentais.

O mundo, ainda em choque após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, produziu a Declaração Universal dos Direitos Humanos três anos depois. O Brasil, ainda olhando paras as feridas de 21 anos de ditadura militar, sentou-se para escrever uma Constituição cidadã. É depois de grandes momentos de dor que estamos mais abertos para olhar o futuro e desejar que sofrimento igual nunca mais se repita.

O problema é que, passadas quase três décadas, acabamos nos acostumando. E esquecendo. E banalizando. A ponto de Michel Temer afirmar que uma proposta que golpeia um dos pontos mais importantes da Constituição Federal, aquele que enumera e garante os direitos fundamentais, é a medida legislativa mais séria e responsável desde a promulgação da própria Constituição.

Ela foi um compromisso de equilíbrio, um pacto político que criou regras de convivência entre grupos e classes sociais.

Discute-se, hoje, a necessidade de refazer essa pactuação social. Pergunto-me que tipo de aberração sairia desse debate, considerando que a principal medida, na opinião da Presidência da República, para o país sair do buraco deixado pelo governo anterior é chicotear o lombo dos mais pobres e preservar os mais ricos.

A volta da taxação de dividendos recebidos de empresas? Uma alteração decente na tabela do Imposto de Renda (criando novas alíquotas para cobrar mais de quem ganha mais e isentando a maior parte da classe média)? Regulamentação de um imposto sobre grandes fortunas? Um aumento na taxação de grandes heranças (seguindo o modelo norte-americano ou europeu)? Por aqui, ninguém sabe, ninguém viu. Do ponto de vista tributário, o Brasil não é uma democracia, mas uma monarquia absolutista cheia de aristocratas.

Herdamos uma Constituição da geração de meus pais e, agora, precisamos mostra-la à de nossos filhos, sob o risco de que o espírito presente em 1988 se perca por desconhecimento da própria história. Ainda mais em tempos de Escola Sem Partido. O problema é que parte da geração que ajudou a escrever aquele texto esqueceu por completo dos debates que levaram até ele, em nome da governabilidade e do poder.

Como defender, portanto, junto a muitos que, agora, tomam as ruas insatisfeitos (mas sem saber exatamente com o quê), que não precisamos reinventar todas as regras, mas tirá-las do papel?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.