Topo

Leonardo Sakamoto

Uma delação de Cunha pode impedir um golpe nos direitos dos trabalhadores

Leonardo Sakamoto

20/10/2016 09h41

A prisão de Eduardo Cunha pode ter um efeito colateral benéfico aos trabalhadores do país.

Qualquer morsa em coma sabe que o ex-presidente da Câmara dos Deputados guarda material suficiente para derrubar a República pelo menos por duas vezes. Se o seu ódio fermentar mais do que os restos de comida usados para fazer maria-louca (a pinga da cadeia) e ele resolver soltar o gogó, e a oferta for aceita pelos procuradores de Curitiba, claro, a Reforma da Previdência Social, do jeito em que está proposta pelo governo Michel Temer, não sai.

Seja porque o comando do governo federal, patrocinador da mudança, seria decapitado, seja porque uma série de parlamentares ligados a ele também iriam ao cadafalso.

É claro que o Brasil precisa alterar os parâmetros de sua Previdência Social e mesmo atualizar a CLT. O país está mais velho e isso deve ser levado em consideração para os que, agora, ingresso no mercado de trabalho. Mas aumentar a idade mínima para 65 anos, como propôs Michel Temer, ignorando que há milhões de trabalhadores braçais que começaram cedo na labuta e, exauridos de força, mal estão chegando vivos a essa idade, é um caso de delinquência política e social.

Você que está, neste momento, fazendo beicinho para o que acabei de escrever, provavelmente não costuma carregar sacos de cimento nas costas durante toda uma jornada de trabalho, cortar mais de 12 toneladas de cana de açúcar diariamente, queimar-se ao produzir carradas de carvão vegetal para abastecer siderúrgicas e limpar pastos ou colher frutas sob um sol escaldante. Aos 14 anos, muitos desses trabalhadores já estavam na luta e nem sempre apenas como aprendizes, como manda a lei. Às vezes, começaram no batente até antes, aos 12, dez ou menos. Afinal, no Brasil, acredita-se na aberração "trabalho molda o caráter da criança" que tem seu jeitão de "só o trabalho liberta".

O ideal seria, antes de fazer uma Reforma da Previdência Social, garantirmos a qualidade do trabalho, melhorando o salário e a formação de quem vende sua força física, proporcionando a eles e elas qualidade de vida – seja através do desenvolvimento da tecnologia, seja através da adoção de limites mais rigorosos para a exploração do trabalho. O que tende a aumentar, é claro, a produtividade.

Mas como isso está longe de acontecer (basta ver a "vida" dos empregados de frigoríficos em todo o país, que são aposentados por invalidez aos 30 e poucos anos por sequelas deixadas pelo serviço), a discussão talvez passe por um regime diferenciado para determinadas categorias. E, mesmo assim, não será simples, pois em algumas delas os profissionais são levados aos limites e aposentados não por danos físicos, mas psicológicos, chegando aos 60 sem condições de desfrutar o merecido descanso.

Temer não foi colocado onde está por conta de sua capacidade de proferir oportunas mesóclises e poemas de qualidade duvidosa. Mas pela expectativa de parte da classe política de que ele, de algum forma, consiga impor um freio à operação Lava Jato. E pela expectativa de Patos Amarelos de que seu governo reduza o tamanho do Estado e aumente a competitividade, passando por cima da qualidade de vida dos brasileiros se necessário for. O que significa impor tetos ao crescimento do investimento em educação e saúde, defenestrar direitos trabalhistas e enfiar goela abaixo mudanças na aposentadoria que ferram com a vida de quem já foi ferrado pela vida.

Se Cunha decidir falar tudo o que sabe e os procuradores da Lava Jato resolverem provar que, em sua opinião, corrupção é ruim em todo o lugar, seja ela petista, tucana ou peemedebista, então a reforma a toque de caixa vai para o beleléu. E teremos a chance de fazer uma discussão aprofundada e com tempo sobre a Previdência Social, mantendo-a como instrumento de efetivação de direitos fundamentais.

Estranha conjuntura essa em que Eduardo Cunha, aparentemente, tem mais força de evitar uma catástrofe na Previdência do que os próprios trabalhadores…

***

Em tempo: Falando em conjuntura… Considerado um excelente analista, Cunha não pode ficar #xatiado com o fato de ter sido abandonado por quem ele ajudou a financiar no Parlamento, muito menos por aqueles que ajudou a colocar no comando do governo federal. Cumpriu a tarefa suja, virou estorvo. Achar o oposto, é de uma inocência atroz.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.