Topo

Leonardo Sakamoto

Nove pessoas mortas pela polícia por dia. E tem gente que acha pouco

Leonardo Sakamoto

28/10/2016 08h40

Policiais não são monstros alterados por radiação para serem insensíveis ao ser humano. Não é da natureza das pessoas que decidem vestir farda (por opção ou falta dela) tornarem-se violentas. Elas aprendem a agir assim.

No cotidiano da instituição a que pertencem (e sua natureza mal resolvida), na formação profissional que tiveram, na exploração diária como trabalhadores e na internalização de sua principal missão: manter a ordem (e o status quo) a qualquer preço.

Ao menos nove pessoas morrem, diariamente, em decorrência de intervenção policial no Brasil. E ao menos um policial é morto, durante o expediente ou fora dele. Os dados constam do 10º Anuário de Segurança Pública, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e está em reportagem da Folha de S.Paulo desta sexta (28).

Apesar de ter havido uma pequena queda de 1,2% (de 59.086 para 58.383) no total de mortes violentas no país, entre 2014 e 2015, as vítimas da violência policial cresceram 6,3%, para 3.345. E o número de policiais mortos diminuiu 3,9%, 393.

Esse problema não se resolve apenas com aulas de direitos humanos e sim com uma revisão sobre o papel e os métodos da polícia em nossa sociedade.

Setores da polícia estão impregnados com a ideia de que nada acontecerá com eles caso não cumpram regras.  Afinal de contas, mais do que um país sem memória e sem Justiça, temos diante de nós um Brasil conivente com o terror como principal ferramenta de ação policial. Métodos incorporados pela polícia na ditadura são revalidados socialmente em nome de nossa (pretensa e frágil) segurança.

Outra parte sabe que a mesma sociedade – mesmo que tire selfies em manifestações – está pouco se lixando para eles e suas famílias. Quer apenas que eles se sacrifiquem e matem em nome da defesa do patrimônio alheio. Para tanto, pagamos salários ridículos e oferecemos péssimas condições de sobrevivência, obrigando-os a aceitarem bicos que os colocam em situação de risco. Segundo o anuário, policiais em folga morrem três vezes mais do que em serviço.

Sei que a justificativa do "estou cumprindo ordens" não cola desde o tribunal de Nuremberg, somos responsáveis pelos atos que cometemos. Mas, neste caso, as justificativas "é a forma que tenho para sobreviver" e "ué, mas sempre me disseram que essa era a forma correta de agir" se entrelaçam de forma complexa. Pois, para muito policial que discorda dessa situação, a saída pode ser sofrer sanções disciplinares ou pedir demissão. Ao mesmo tempo, denunciar um colega violento ou uma milícia formada a partir da corporação significa sentença de morte para um policial honesto e sua família.

Isso não nos impede de cobrar o avanço do debate sobre a desmilitarização da polícia dos administradores públicos e responsabilizá-los por cada ato de violência estatal oriundo dessa inação. O problema é que isso tem sido dar murro em ponta de faca.

Por exemplo, os policiais executores dos 111 presos no massacre do Carandiru, em 1992, foram condenados pela Justiça – que depois anulou o julgamento (houve até desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo que afirmou que eles agiram em "legítima defesa"). Mas nenhum político, responsável por essas forças policiais, foi ao banco dos réus. Afinal, são eles que mantêm a política de controle da população, valendo-se de uma massa de pessoas obrigada a aceitar ordens bizarras para não perder o emprego.

Parte da população, cansada da violência, apoia e legitima desvios por parte da polícia. Acha que "bandido bom é bandido morto". O que é um indicador que nossa sociedade está doente. Ao se criticar execuções de pessoas sob as mãos do Estado, não defendemos "bandido", mas sim o pacto que os membros da sociedade fizeram entre si para poderem conviver (minimamente) em harmonia. Não entregamos para o Estado o poder de usar a violência como último recurso a fim de proteger os cidadãos para que ele a use como padrão de solução de todos os conflitos. Se for para isso, não precisamos de um Estado, muito menos de governantes.

A polícia, um dos braços armados desse Estado, deve seguir as leis e não usar os mesmos métodos dos bandidos sob a pena de gerar filhotes monstruosos. Como uma polícia que não se preocupa com a vida das pessoas. Ou as milícias, já citadas acima, brotadas no seio da forca policial e que mantém o poder político ou econômico em comunidades, tornando-se piores que outras formas de crime organizado.

Enquanto isso, o impacto disso se faz sentir no dia a dia. E nem estou tratando da forma como a polícia trata manifestações ou protestos, mas das periferias das grandes cidades e dos grotões da zona rural, em que o Estado aterroriza parte da população (normalmente mais pobre) com a anuência da outra parte (quase sempre mais rica).

O Brasil vive um clima em que, no afã de combater crimes que lesam os cofres públicos ou a dignidade humana, atores públicos acreditam que podem passar por cima das leis. Mas leis estão acima de governantes, parlamentares e juízes e não abaixo deles. Nenhuma exceção pode ser aberta com a justificativa de erradicar um crime sob o risco de limarmos, durante esse processo, a própria razão de existência do país.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.