Topo

Leonardo Sakamoto

As mortes na Cidade de Deus: O medo de bandidos, da polícia e de nós mesmos

Leonardo Sakamoto

21/11/2016 11h08

Os corpos de sete jovens da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, foram encontrados em um matagal, neste domingo (20), após uma ação policial na comunidade que começou um dia antes. Não se sabe ainda quem foram os responsáveis pela morte dos jovens, que estariam ligados ao tráfico, mas moradores acusam a polícia militar.

Durante a operação, um helicóptero caiu durante a operação, matando quatro policiais. Segundo o secretário de Segurança Pública do Rio, Roberto Sá, informações preliminares indicam que nem os PMs, nem o helicóptero foram atingido por armas de fogo.

Ou seja, ao menos temos 11 mortos em mais um capítulo da estúpida guerra contra as drogas. Em meio ao tiroteio entre policiais e grupos de criminosos, a população ficou espremida em um campo de batalha urbano que não deixa nada a dever a conflitos deflagrados em outras partes do mundo, como na Síria. Com o agravante de que, aqui, não se busca criar um Estado independente.

cidadededeus

Parte do esgoto que corre nas redes sociais já culpa a "turma dos direitos humanos" pela queda do helicóptero – fazendo valer a máxima da pós-verdade: "verdade" é tudo aquilo com a qual um tosco concorda e "mentira" é tudo aquilo com a qual discorda. Mas também por "manchar a imagem do Rio lá fora" – como se o Estado precisasse de ajuda para isso.

Muita gente torce para que a contagem de corpos seja ainda maior. Ao mesmo tempo, uma parte da imprensa (e não estou falando dos programas sensacionalistas espreme-que-sai-sangue) parece vibrar a cada pessoa abatida na periferia, independentemente de quem quer que seja, como se fosse um alívio para a plateia formada por autointitulados "homens e mulheres de bem". Leitores afirmam que "isso é guerra e, na guerra, abre-se exceções aos direitos civis", tudo em defesa de uma breve e discutível sensação de segurança.

De acordo com nota divulgada pela Anistia Internacional, em 2015, foram pelo menos 1.250 mortos vítimas de crimes violentos como homicídio e latrocínio e, pelo menos, 307 pessoas mortos em operações policiais na cidade. Em ambos os casos, as vítimas são em sua maioria jovens, negros, do sexo masculino.

As batalhas do tráfico sempre aconteceram longe dos olhos da classe média e alta da mídia, uma vez que a imensa maioria dos corpos contabilizados sempre é desses jovens, negros, pobres, que se matam na conquista de territórios para venda de drogas, pelas leis do tráfico e pelas mãos da polícia e das milícias. Os mais ricos sentem a violência, mas o que chega neles não é nem de perto o que os mais pobres são obrigados a viver no dia a dia. Mesmo no pau que está comendo hoje no Rio, sabemos que a maioria dos mortos não é de rico da orla, da Lagoa, da Barra ou do Cosme Velho.

Considerando que policiais, comunidade e traficantes são de uma mesma origem social e, não raro, da mesma cor de pele, é uma batalha interna. Mortos pelos quais pouca gente fora das comunidades irá prantear.

Drogas matam. Mas os óbitos por overdose ou em decorrência de crimes cometidos sob a influência de entorpecentes ilegais são a minoria dos casos. Registros policiais mostram que há mais homicídios relacionados ao consumo excessivo de álcool – que é uma droga permitida por lei e estimulada pela TV – do que a qualquer outra.

A forma como o tráfico se organizou e a política estúpida adotada pelo poder público para combatê-lo estão entre as principais razões desse conflito armado organizado.

No capitalismo, toda a expansão de mercado é conflituosa. Quando se abre uma loja em um bairro, os que lá já estavam estabelecidos podem se sentir prejudicados. Ainda mais quando os forasteiros trazem produtos melhores e a preços mais baixos. Se a concorrência é agressiva e chega a tal ponto que a convivência pacífica torna-se insustentável, pode-se apelar à Justiça, que decidirá quem tem razão na disputa.

Mas o que fazer quando se vive em um sistema ilegal, condenado pela própria Justiça? A solução é ter o maior poder bélico possível para fazer valer o seu ponto de vista sobre os demais, sobre a polícia, sobre os moradores de determinada comunidade. É necessário controlar – por bem ou por mal – um território. Uma das garantias que o traficante pode dar é ter um território consolidado, seguro para estocar a mercadoria e vender à sua freguesia. Quanto mais território um grupo possui, mais pontos de venda terá.

Mais cedo ou mais tarde, e gostem vocês ou não, haverá uma paulatina descriminalização e regulamentação do comércio e do uso de psicoativos, com, é claro, a necessária e prévia introdução de um sistema de informação e conscientização sobre o seu uso.

Por uma razão simples: o negócio formal dá dinheiro. E muito. Nos Estados do Colorado e na capital Washington DC, por exemplo, os Estados Unidos já haviam legalizado a maconha – tal qual nosso vizinho Uruguai. E a violência não aumentou, pelo contrário. Agora a Califórnia, o maior PIB dos Estados Unidos e centro criativo tecnológico do mundo, também a legalizou em plebiscito.

Outros países discutem o mesmo, incluindo substâncias mais fortes. Sabem que a Guerra às Drogas falhou, servindo apenas para controle geopolítico e para fortalecer grupos de poder locais e o tráfico de armas. Por aqui, a Justiça ainda discute qual o tamanho do porte de maconha que pode dar cadeia.

E se a maconha fosse legalizada aqui também? E se fossemos além e regulamentássemos o consumo de outras drogas, reduzindo assim o comércio ilegal e a necessidade de armar-se até os dentes disputar territórios? E se encarássemos a dependência química como questão de saúde pública e não criminal? Teríamos uma redução significativa da guerra de facções criminosas entre si, entre facções criminosas e a polícia (tanto a parte honesta quanto a banda podre) ou entre a polícia honesta e as milícias.

Mas as classes mais altas perderiam um excelente instrumento de controle das classes mais baixas. Nesse caso, qual seria a justificativa para entrar e botar ordem na comunidade? De limpar tudo para garantir a alegria da especulação imobiliária, que sobe o morro no Rio?

Mais do que uma escolha pelo crime, o tráfico pode ser uma escolha pelo emprego e pelo reconhecimento social. Um trabalho ilegal e de extremo risco, mas em que o dinheiro entra de forma rápida. Dessa forma, pode ajudar a família, melhorar de vida, dar vazão às suas aspirações de consumo – pois não são apenas os jovens de classe média que querem o tênis novo que saiu na TV. Ganhar respeito de um grupo, se impor contra a violência da polícia. E uma vez dentro desse sistema, terá que agir sob suas normas. Matando e morrendo, em uma batalha em que, para cada baixa, fica uma família.

Precisamos garantir que esses jovens possam construir outros caminhos. Enquanto isso não acontecer, somos nós que os empurramos para o crime diariamente.

Já faz tempo que o Rio optou pelo caminho mais fácil do terrorismo de Estado ao invés de buscar mudanças estruturais – como garantir qualidade de vida à população e essas perspectivas para os mais jovens, para além de despejar força policial dia e noite. Foi assim para viabilizar os Jogos Panamericanos, a Copa do Mundo e as Olimpíadas. A crise de governabilidade pela qual passa o Estado, aliado à crise econômica, apenas aprofunda esse quadro.

Nesse contexto, muita gente tem orgasmos múltiplos quando vê corpos de jovens ligados ao tráfico ou não sangrando aqui e ali. Ou que amam qualquer tipo de execução sumária de pobre, sejam as feitas legalmente e "informalmente" pela mão do próprio do próprio Estado (ao caçar traficantes em morros cariocas ou na periferia da capital paulista), sejam as feitas pelas mãos da população (ao linchar suspeitos de crimes por turbas enfurecidas e idiotizadas).

Ninguém está defendendo o tráfico, muito menos traficantes. O que está em jogo aqui é que tipo de Estado e de sociedade que estamos nos tornando ao defendermos pena de morte de jovens negros e pobres ou mesmo a Justiça com as próprias mãos. Do que estamos abrindo mão com isso?

Enfim, como já leram várias vezes por aqui, de vez em quando não sei de quem tenho mais medo: dos bandidos, dos "mocinhos" ou de nós mesmos.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.