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Leonardo Sakamoto

Temer reclama de ser "grampeado". Mas ele ajudou a inaugurar o "vale tudo"

Leonardo Sakamoto

27/11/2016 15h56

Michel Temer ficou irritado com gravações que teriam sido feitas pelo então ministro da Cultura Marcelo Calero de conversas entre os dois sobre a pressão realizada pelo, agora, ex-ministro-chefe da Secretaria de Governo da Presidência da República Geddel Vieira Lima. Ele queria a liberação pelo patrimônio histórico da construção do prédio onde ele terá um apartamento de luxo. Depois de pedir demissão, Calero denunciou a pressão de Geddel e envolveu a cúpula do governo federal.

"Eu, com toda franqueza, acho gravar clandestinamente é sempre algo desarrazoável, quase indigno. Eu diria mesmo indigno", afirmou Temer neste domingo (27).

Do ponto de vista jurídico, há limites para a validade de gravações que podem incriminar alguém feitas sem o seu conhecimento ou consentimento. Policiais e procuradores, por exemplo, devem coletar provas obedecendo à lei sob o risco de invalidar toda uma investigação ao passar por cima dos direitos do investigado.

O mesmo não se pode dizer de uma gravação feita de forma escondida para fins jornalísticos ou de denúncia social. Pois, não raro, essa é a única forma de trazer à tona um fato de interesse público que alguém ou alguma instituição quer, sistematicamente, manter às sombras. Isso não necessariamente serve como prova – ou não deveria servir – mas vale como um pontapé inicial para abrir uma investigação e, a partir daí, coletar provas de acordo com o que prevê a lei.

Suponhamos, porém, que Michel Temer tenha razão em sua reclamação. E vamos esquecer que ele e a cúpula de seu governo não negaram o teor das conversas com o ex-ministro da Cultura (o esforço deles até aqui tem sido o de vender uma outra interpretação para o conteúdo, do tipo: "quando dissemos que o céu é azul, quisemos dizer, a bem da verdade, que ele é verde", como se todo mundo não fosse capaz de entender o que aconteceu).

O fato é que em um ambiente de equilíbrio institucional e de bom funcionamento da democracia, não consigo imaginar um ministro de Estado gravando um presidente da República para se proteger de ataques do próprio governo e denunciar desvios de função.

Mas vale tudo em um país em que se construiu uma narrativa com malabarismos técnicos para cassar uma presidente. Vale lembrar que Dilma não estava sendo julgada por seu governo (ruim) ou por seus correligionários e aliados (corruptos), mas pela emissão de decretos de crédito suplementar sem autorização legislativa. Que, por ter sido adotado por vários outros administradores públicos sem a mesma punição, mostrou-se apenas uma ferramenta de ocasião.

Ou seja, a forma como foi tocado o impeachment, a fim de tira-la de lá rapidamente, optando por atalhos questionáveis e passando-se por cima das instituições, abriu-se a porteira para que muita coisa fosse possível dali em diante.

De certa forma, por ter conspirado contra sua companheira de chapa para ocupar seu lugar (independentemente de você considerar que foi golpe, impeachment ou granola, há de convir que Temer atuou abertamente pela queda de Dilma e não se manteve em silêncio paciente como fez Itamar Franco em sua época) o, agora, presidente ajudou a enfraquecer as instituições da República. Agora, o processo dá o troco.

O problema é que, iniciado o processo de derretimento das instituições, ele não pode ser freado do dia para a noite. Demanda nova pactuação política e social, aliada a muito suor em articulações para a construção de consensos. Ou seja, a dúvida que fica é se a reação em cadeia não é inevitável e nos levará inexoravelmente para o buraco.

Por fim, antes que eu me esqueça: parabéns a todos os envolvidos.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.