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Leonardo Sakamoto

Caro João Doria, precisamos mesmo limpar SP. De todo tipo de preconceito

Leonardo Sakamoto

05/12/2016 23h25

"A cidade é um lixo vivo, parece um filme escabroso. Hoje, a cidade tem 16 mil moradores de rua, no início dessa gestão eram 6 mil. Antes tinha uma Cracolândia na cidade com 400 usuários e hoje são três mil espalhados por seis cracolândias." A afirmação é do prefeito eleito João Doria e foi feita para uma plateia de empresários nesta segunda (5).

O que chama a atenção não é a crítica à atual administração (você pode amar ou detestar a gestão Haddad, isso faz parte de uma democracia), mas Doria ter vinculado determinados grupos sociais à ideia de lixo. Em uma São Paulo na qual pessoas em situação de rua são espancadas até a morte por seres que se autointulam "cidadãos de bem" que querem "limpar" a cidade do "lixo humano", esse tipo de declaração não contribui em nada. Pelo contrário, incentiva o comportamento insano daquela parte dos moradores da capital que são incapazes de conviver com a diferença.

Vira e mexe alguém põe fogo em um cobertor de uma pessoa que está dormindo na rua. As que sobrevivem ficam marcadas pelo resto da vida. A culpa? Na maioria das vezes, recai sobre as próprias vítimas. "Afinal de contas, o que essa gente diferenciada estava fazendo fora do seu lugar? Esses jovens agiram com violência desnecessária, mas o mendigo também pediu, né?"

Na prática, as pessoas envolvidas nesses casos apenas colocam em prática o que devem ter ouvido a vida inteira: "putas", "bichas", "índios", "drogados" e "mendigos" são a corja da sociedade e agem para corromper os nossos valores morais, tornar a vida dos "cidadãos pagadores de impostos", um inferno, e a cidade, um lixo. Seres descartáveis, que vivem na penumbra e nos ameaçam com sua existência, que não se encaixa nos padrões estabelecidos pelos "homens de bem".

Não buscamos o desenvolvimento e a implantação de políticas públicas de inclusão. Ao invés disso, vamos afiando a nossa falta de bom senso. Enxotamos, negamos comida, matamos a pauladas, rasgamos a cidadania – quase que impunemente, limpando a urbe para os que fizeram por merecer. Ou herdaram esse direito.

Pode bater em "mendigo" que dorme na rua? Queimar gente que cochila em ponto de ônibus é crime? Derrubar a casinha imaginária de papelão de quem não tem teto é errado? Jogar desinfetante em pobre que cheira mal é pecado? Eles têm o direito de ocupar o mesmo espaço que nós, que pagamos impostos? São, realmente, considerados seres humanos? A igreja já soltou algum comunicado dizendo que eles têm alma ou não da mesma forma como ela já fez com os índios?

Como já disse aqui, líderes políticos ou religiosos dizem que não incitam a violência. Mas não são suas mãos que seguram a faca, o revólver ou a gasolina, mas é a sobreposição de seus argumentos e a escolha que faz das palavras ao longo do tempo que distorce a visão de mundo de seus seguidores e torna o ato de esfaquear, atirar e queimar banal. Ou, melhor dizendo, "necessário". Suas ações alimentam lentamente a intolerância, que depois será consumida pelos malucos que fazem o serviço sujo.

Que serão, finalmente, absolvidos pela nossa ignorância coletiva.

 

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.