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Leonardo Sakamoto

Virada Cultural: A vocação de SP para erguer muros separando ricos e pobres

Leonardo Sakamoto

07/12/2016 14h42

O bom é que, em tempos cruéis, a crueza aparece.

De acordo com Fabio Santos, indicado pelo prefeito eleito João Doria para assumir a Secretaria de Comunicação, um dos motivos para que a próxima administração municipal de São Paulo queira levar parte da Virada Cultura para o Autódromo de Interlagos é o risco trazido por moradores da periferia.

"Na Virada, o que acaba acontecendo —me perdoe a crueza— é que você tem uma galera que vem da perifa, alguns organizados para fazer isso", disse ele em entrevista à Folha de S.Paulo nesta terça (6).

Cita os arrastões cometidos em ruas do Centro durante o evento e explica que a Polícia Militar não consegue "controlar os pontos de acesso". Também falou da questão sanitária, que transformaria o Centro em um banheiro a céu aberto.

O ponto é que a "galera que vem da periferia" é boa parte do público dos shows realizados durante a virada – público que, muitas vezes, pode aproveitar o Centro pela primeira vez como cidadão e não como trabalhador apenas. E, vale lembrar, também boa parte dos artistas que se apresentam nela – garantindo que o povo das áreas mais centrais conheçam a rica, complexa e plural produção cultural da periferia.

A questão dos crimes cometidos por alguns grupos deve ser enfrentada com inteligência, prevenção e policiamento intensivo pelas forças de segurança. Mas sem mexer no direito de ir e vir da maioria da cidade. Afinal de contas, moradores de bairros ricos como os Jardins ou o Morumbi não estão impedidos de visitarem o resto da cidade, mesmo considerando que lá vivem empresários e políticos investigados ou condenados por desviar bilhões dos cofres públicos.

Gente que, no quesito "risco para a sociedade", tem muito a ensinar aos batedores de carteira e ladrões de celular.

São Paulo, ao longo dos séculos, foi se aprimorando na arquitetura e no urbanismo da exclusão. Sei que falar sobre isso irrita os adeptos do "paulistanismo", o nacionalismo paulistano, que evoca como heróis os bizarros bandeirantes. Mas temos sido cúmplices no silêncio que, tolamente, considera que uma cidade é um conjunto de espaços privados e ignora sua parte pública.

Na mesma linha da mudança da Virada Cultural, estavam os pedidos de mudanças no traçado da futura linha 6-laranja metrô após reclamações de moradores do rico bairro de Higienópolis que tiveram o objetivo claro de excluir os mais pobres da região, mais do que aproximar, alimentando a ignorância que gera a intolerância e o medo das cercas eletrificadas que circundam casas e apartamentos. Cercas que se voltam contra seu criadores. Que acham que deixam os malucos de fora quando, na verdade, transformam a vida dos de dentro numa triste prisão.

Logo após a fundação da vila de São Paulo de Piratininga, José de Anchieta, com a ajuda de índios catequizados, ergueu um muro de taipa e estacas para ajudar a mantê-la "segura de todo o embate", como descreveu o próprio jesuíta. Sim, São Paulo já foi uma cidade fisicamente murada.

Os indesejados eram índios carijós e tupis, entre outros, que não haviam se convertido à fé cristã e, por diversas vezes, tentaram tomar o arraial, como na fracassada invasão de 10 de julho de 1562.

Ao longo dos anos, a vila se expandiu para além da cerca de barro, que caiu de velha. Vieram os bandeirantes, supra citados heróis (sic) que caçaram, mataram e escravizaram milhares de índios sertão adentro. E, com isso, ampliaram as fronteiras.

Como já disse aqui antes, apesar da frenética transformação do pequeno burgo quinhentista em uma das maiores e mais populosas metrópoles do mundo, centro financeiro e comercial da América do Sul, o espírito do muro de taipa se manteve.

Ele, às vezes, se materializa na forma de barreiras de contenção para o "próprio bem" de uma comunidade, como ocorreu na favela do Moinho, por mais que aumente as chances das pessoas morrerem queimadas por falta de saídas em caso de incêndio. Incêndios que, principalmente entre 2011 e 2012, insistiram em queimar favelas e a ajudar a especulação imobiliária por aqui.

Ou na descarada política de segregação social levada a cabo pelo poder público, que fecha o metrô, quando este devia ser 24 horas.

Na maior parte do tempo, contudo, permanece invisível, impedindo o acesso dos excluídos à cidadania plena do burgo paulistano. Seja impedindo sua mobilidade, empurrando-os para morar de forma insalubre nas franjas da cidade, negando educação e saúde de qualidade, seja tratando pobres como lixo em espaços públicos centrais, deixando claro que eles não são bem-vindos por lá – como na mudança de foco de uma Virada Cultural. Não adianta consertarem dizendo que haverá algumas atrações em prédios no Centro. É a centralidade da rua e o seu significado que estão em disputa aqui.

A cidade possui uma área mais rica e urbanizada em seu chamado "centro expandido", cercada pelos rios Tietê e Pinheiros, e uma periferia mais pobre. Nós, moradores da área protegida pelas muralhas invisíveis, sejamos nós progressistas ou conservadores, revolucionários ou reacionários, vivemos em relativo conforto e segurança em comparação com quem mora do lado de fora, que sobrevive trabalhando para a riqueza do burgo. Cresci no Campo Limpo e ainda lembro das ruas de terra de quando fomos lá morar há uns 35 anos. Conheço os dois lados da moeda e posso dizer que, do lado de lá, o muro parece enorme.

É preciso garantir a quem segura essa cidade nas costas não apenas aos domingos, feriados e dias de shows que eles se sintam donos de tudo isso. Aterrar mais rapidamente o fosso que separa centros de periferias.

Vendo as estatísticas de assassinatos de jovens na periferia de São Paulo, aliás, vale dizer que, antes do direito à cultura e ao lazer, essa molecada está sendo desrespeitada no seu direito à vida. Portanto, o poder público deveria estar quebrando a cabeça para colocar em práticas formas de garantir a eles o mínimo de dignidade, ao invés de encontrar formas de mantê-los longe dos autointitulados "cidadãos de bem".

Caso contrário, aquele muro do século 16 continuará explicando quem realmente somos.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.