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Leonardo Sakamoto

O abuso de autoridade no país do "você sabe com quem está falando?"

Leonardo Sakamoto

09/12/2016 20h13

Toda a discussão sobre o projeto de lei que aumenta a punição por abuso de autoridade, que irritou magistrados, promotores e procuradores, me fez lembrar dos seres humanos que sentem-se mais especiais que os demais no nossos dia a dia.

Seja porque herdaram algo, seja porque a vida lhes sorriu mais, não importa. Esse tipo, quando colocado contra a parede, gosta de relinchar um bom: "Você sabe com quem está falando?"

A frase é arrogante e prepotente, mas também carrega séculos de nossa formação, lembrando que uns falam, outros obedecem.

E que, na visão de parte de nossa elite política e econômica, a igualdade de direitos é um discurso fofo que se dobra às necessidades individuais.

Não somos uma sociedade de castas. Porque cada um sabe qual o seu quadrado.

"Quem você pensa que é?", frase menos agressiva e útil frente a algum desmando de um representante do Estado, por exemplo, não faz tanto sucesso por aqui como a outra.

Pois não é o questionamento do uso exagerado do poder por um policial ou um fiscal que está em jogo nesse momento de discussão, mas sim a afronta de tentar tratar um "dotô" como se fosse um operário qualquer.

A ideia vai se adaptando conforme o ambiente e pode, agregando valores, assumir outras formas:

– Teu salário paga a comida do meu cachorro.

– Eu conheço gente importante, sabia?

– Você vai perder seu emprego, meu irmão.

– Isso que dá vir a um lugar que tem essa gentinha.

No Brasil, de uma maneira geral, se você quiser viver em uma bolha a vida inteira, praticamente consegue. Tenho amigos que conhecem a Europa e os Estados Unidos, mas só foram à Itaquera, pela primeira vez, na Copa.

Ou que nunca estudaram com um homem negro ou uma mulher negra. Daí, achar que racismo não existe porque não existe contato com a diferença é um pulo.

Essa ausência da cultura da alteridade leva ao medo e colabora com comportamentos e frases bizarras, revelando o lado mais sombrio da alma de cada um. O que é extremamente complicado porque o Brasil é composto majoritariamente por essa "gentinha pobre que nunca sabe com quem está falando".

Não se espera que os mais ricos passem a defender que os mais pobres tenham os mesmos direitos que eles (é o sistema, estúpido!), mas, pelo menos, que concordem com um mínimo para viabilizar a convivência pacífica.

Com o crescimento econômico, aumentou o número de pessoas com acesso a bens e serviços. Isso gerou aquela "infestação de gente parda e feia" nos aeroportos, que estão tomando o "nosso" lugar.

O ruim de tudo isso é que mesmo com muito trabalho de educação para a cidadania, concomitante a mudanças estruturais para garantir que a República realmente sirva ao interesse comum, ainda assim levará um rosário de gerações até que frases forjadas pelo preconceito e a soberba tornem-se peça de museu.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.