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Leonardo Sakamoto

Governo Crivella quer volta de revista aos pobres que vão à praia

Leonardo Sakamoto

12/01/2017 12h44

O secretário de Ordem Pública do Rio de Janeiro, coronel Paulo Amêndola, escolhido pelo prefeito Marcelo Crivella, quer retomar a revista às pessoas que cheguem de ônibus às praias da Zona Sul carioca.

"Os ônibus vão chegando, despejando pessoas nas praias, e grupos de policiais vão revistar as pessoas, ver se estão armados, verificar se têm documentos. Tem menores de idade que saltam na zona sul sem dinheiro. Como vão voltar? Vão roubar de alguém! Ou dar calote. Os guardas nas areias estarão de olho nessas pessoas", afirmou em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo. Segundo ele, quem vier sem dinheiro se tornará um suspeito.

Não é a primeira vez que alguém tem essa ideia genial. Mas a cada vez que ela aparece, não deixo de me surpreender com a natureza humana.

Constranger o acesso a uma área pública, como uma praia, porque não se tem dinheiro no bolso é, além de autoritário e inconcebível, uma punição preventiva por um crime que ainda não se cometeu ou não se cometerá. Além de clara discriminação social e econômica pelo poder público. O coronel afirma que a atuação não será discriminatória – o que é difícil imaginar porque a ideia é, em si, discriminatória.

E se um amigo emprestar dinheiro ou a pessoa conseguir uma carona de volta? Quantas vezes pessoas já não foram, quando jovens, se divertir sem uma merreca no bolso, contando com a boa vontade dos outros?

E, vale lembrar, a revista de passageiros sem uma boa justificativa passa por cima de direitos e, por isso, a Justiça chegou a suspender essas ações preventivas no Rio. Não que a polícia não faça isso sistematicamente com moradores mais pobres das grandes cidades, mas a cena de um monte de gente, majoritariamente negra da periferia, sendo revistada enquanto outros, mais ricos, chegam e armam o guarda-sol sem serem incomodados, é gritante.

Há tantas razões para achar a medida uma besteira que não consigo entendê-la como proteção a moradores e turistas, mas segregação pura e simples.

As forças de segurança em uma grande metrópole, como o Rio ou São Paulo, são treinadas para, primeiro, garantir a qualidade de vida e o patrimônio de quem está na parte "cartão postal" das cidades e, só depois, garantir o mesmo para outras camadas sociais. Temendo que a parte "encardida" da cidade estrague a festa, a incapacidade do poder público garantir soluções estruturais cria situações como essa.

Muita gente escreveu sobre a possibilidade de terrorismo internacional nos jogos olímpicos, ao analisar as possibilidades midiáticas de difusão do medo pelos açougueiros do califado islâmico. O que se comprovou paranoia e não realidade. O que de fato continuamos tendo é o terrorismo de Estado contra a própria população.

O Rio cria entraves à liberdade ao reprimir ainda mais o punhado de direitos das comunidades pobres que ainda não foram defenestrados. A população cada vez mais teme seu governo ao invés de respeitá-lo. Dessa forma, vamos nos afastando das mudanças para garantir paz – que incluem um Estado que pense em qualidade de vida para todos e, ao mesmo tempo, em um horizonte de opções para os mais jovens que saem em busca de um lugar no mundo e caem no colo do tráfico.

Em nome da ordem, o Rio renova seu estoque de gás lacrimogênio, lançando mão de caveirões e bombas. Que limpam a cidade para os "homens e mulheres de bem", além de esportistas, jornalistas, políticos e turistas como se a dignidade fosse uma grande UPP.

Quando a população vai à rua protestar contra a redivisão dos royalties do petróleo, as elites econômica e política acham tudo bonito. Quando as pautas são sociais, pau neles. E quando é com pobre, aí é revista e se abrir a boca, já viu. Lembra os verde-olivas que adoravam uma marcha cívica, mas desciam o cacete nos estudantes que protestavam e nas "hordas de bárbaros" quando elas saíam da casinha.

Claro que ninguém quer ir à praia, com sua família e amigos, para correr o risco de ser assaltado por ladrões, apanhar ou coisa pior. O problema é que pseudopolíticas de segurança pública como essa, que tratam parcelas da população somo sub-gente, empoderam ainda mais ações como as de setembro de 2015, quando grupos se organizaram por redes sociais no Rio de Janeiro, para caçar, por conta própria, a "origem da violência" na praia.

Justiceiros urbanos desmiolados, em bando, tal como aqueles que promovem arrastões, atacaram ônibus com pessoas que consideravam suspeitas, espancaram jovens, construíram um novo conceito de Justiça para preencher o vazio deixado pelo Estado. Ao final, comemoraram tudo na internet.

Queria viver em um país em que não houvesse cidadãos de primeira e segunda classes. Ambientes mais coloridos de pessoas mas também de ideias. Só não sei se todo mundo iria querer viver em um lugar assim também.

A herança da escravidão se faz sentir ainda porque ela é constantemente reinventada, não mais atrelada apenas à cor da pele e origem étnica, mas ainda consequência desta.

Isso lembra a todos que a cidade é para alguns que têm um tanto na conta bancária e pensam de uma determinada forma. Esses podem participar dos destinos de sua pólis e ser tratados com dignidade. Para os outros, resta um "Rio: ame-o ou deixe-o".

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.