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Leonardo Sakamoto

Ser mãe ou esposa de um preso é ir ao inferno junto com ele

Leonardo Sakamoto

18/01/2017 19h46

Por trás de quem mata e quem morre, há outras pessoas que sofrem junto.

Quando um crime acontece, lembramos primeiro – e com toda a razão – da dor de quem perdeu o ente querido ou acompanhou seu sofrimento nas mãos de uma ação violenta, de um ato criminoso, de um gesto tresloucado ou inconsequente.

Mas há duas famílias envolvidas, sendo que a do outro lado raramente é lembrada. Pelo contrário, torna-se corresponsável. E, por mais que nenhum juiz declare pena, vão para o inferno junto.

Um grupo de mulheres que protestava na porta da penitenciária de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, foi retirada com balas de borracha e spray de pimenta por policiais militares nesta quarta (18). Elas haviam queimado sofás e pneus. Uma delas chegou a desmaiar e outra, grávida, começou a ter convulsões. Segundo apurou reportagem do UOL,  o protesto é porque seus parentes, pertencentes a uma facção criminosa estão com medo de morrer pelas mãos de outra facção caso as transferências de presos deixem eles em minoria.

"Quero que meu filho pague, mas cumprindo o direito dele", disse uma das mães ao repórter Carlos Madeiro. A chacina dentro desse presídio já deixou, ao menos, 26 mortos, e entra na conta da matança que está acontecendo no sistema prisional brasileiro no vácuo de políticas deixado pelo Estado.

Esclarecedor de nossa sociedade machista é que, nas redes sociais, leitores bradam que a culpa também foi dessas mulheres por terem criado seus homens assim. Bem, talvez sim. Talvez não. Talvez seja responsabilidade também de nossa ação e nossa inação como sociedade. Talvez da incompetência do Brasil em mudar sua política antidrogas e parar de mandar para a cadeia vendedor de maconha; em permitir que mais de um terço dos presos seja provisório, sem julgamento; de garantir que prisões sejam escolas de crime e não ressocializem, pelo contrário, gerem ódio contra a sociedade; de fornecer alternativas e oportunidades reais.

Quando alguém é preso, geralmente não segue para a cadeia sozinho pagar pelo crime que cometeu. Vão também mães, irmãs, esposas, filhas, avós que, religiosamente, fazem filas nas portas dos centros de detenção e presídios, ou das Fundações Casa e similares, desde as primeiras horas nos dias de visita.

No final, a pena de muitas mulheres começa na condenação de seus filhos, maridos, pais, irmãos e terminam quando eles deixam a cadeia. Quando deixam. Quando não as deixam. Quando conseguem sair, enfim, sem carregar a cadeia dentro de si. Sendo jovens, levam por toda a vida. E, daqui a pouco, talvez a partir dos 16.

É triste que as mesmas filas que se formam nas portas de um depósito masculino de gente não se formem do lado de fora dos presídios femininos. A quantidade de pais, irmãos, maridos, filhos, avôs que vão visitar mulheres encarceradas são, proporcionalmente, em número vergonhosamente menor do que a quantidade de visitantes mulheres de homens encarcerados.

O padrão em nossa sociedade é que mulheres acompanhem e sirvam, entendendo que precisam ser repostas, quando necessário. E que homens atuem para manter e defender esse ciclo idiota.

Os presos que são condenados devem pagar o débito com a sociedade. Mas eu, que não creio em transferência de culpa, sinto uma áspera tristeza em cenas como as de hoje. Mães não deveriam ser abandonadas. Não deveriam perder seus filhos assassinados por outros filhos que, por conta disso, também vão abandonar suas mães. E mães não deveriam tomar chuva e passar frio para visitar seus filhos.

Quando tratei desse assunto em outro texto por aqui, recebi uma mensagem de um leitor que cravou: "mãe de bandido deveria ser esterilizada". Nesta quarta, li coisas muito parecidas circulando na rede.

Talvez seja essa a saída e não a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos: esterilizar úteros que pariram criminosos. Ou, talvez, se nossa ciência permitir, descobrir com cálculos precisos os úteros ruins e impedir que deles brote algo.

Conhecendo nossa sociedade, os úteros ruins não serão úteros ricos, que sempre tiveram acesso a tudo – mesmo que, de alguns deles tenha brotado os que põem fogo em indígenas em pontos de ônibus, espancam pessoas em situação de rua, matam homossexuais ou transexuais pelo ódio à diferença ou a si mesmos. Ou que roubam bilhões do poder público, corrompem e são corrompidos, escravizam.

Mas úteros negros e pardos, que lavam roupa, fazem faxina e não raro criam os filhos sozinhos. Úteros que andam de ônibus, ganham uma miséria, dividem-se entre o trabalho e a família.

E, por isso, não vivem, apenas enfileiram-se, dias e noites, na periferia de alguma grande cidade.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.