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Leonardo Sakamoto

Eike Batista, cela especial e o Brasil que discrimina por anos de estudo

Leonardo Sakamoto

30/01/2017 13h21

O empresário Eike Batista foi preso na manhã desta segunda (30), ao voltar ao Brasil, após alguns dias figurando na lista de procurados internacionais. Sua prisão havia sido decretada como desdobramento da Operação Lava Jato por corrupção e pagamento de propina. Eike – que, há cinco anos, aparecia como a sétima pessoa mais rica do mundo pela lista da Forbes – estaria preocupado em ficar em uma cela comum enquanto aguarda uma decisão da Justiça, uma vez que não concluiu o ensino superior.

É uma preocupação rara para quem tem muito dinheiro no país. Apesar de não haver uma relação obrigatória de causa (ser rico) e consequência (ter diploma universitário), a incidência de diploma é maior entre os mais abastados do que entre os mais pobres.

A desigualdade social se manifesta de diversas formas, algumas mais tacanhas que outras. A prisão especial provisória para quem tem diploma, na minha opinião, é uma das mais descaradas. Afinal, se duas pessoas cometem o mesmo crime, mas um delas estudou mais, esta poderá ficar em uma cela especial, separada dos demais presos até condenação (ou absolvição) em definitivo. Se a outra tiver, digamos, até o ensino médio, terá que aguardar o julgamento com a massa, na xepa.

Gostaria de resgatar essa discussão que já travei aqui aproveitando o caso de Eike. Não vou entrar no mérito dele pleitear o benefício, mas a existência desse benefício em si.

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O artigo 5° da Constituição Federal diz que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". Mas, na prática, a legislação brasileira confere o privilégio de não ficar em cárcere comum até o trânsito em julgado de uma decisão penal condenatória para alguns grupos. Em certos casos, como juízes e delegados de polícia, por exemplo, isso faz sentido. Em outros, como os detentores de diploma de curso superior, não.

Quem teve acesso à educação formal desfruta de direitos sobre quem foi obrigado, em determinado momento, a escolher entre estudar e trabalhar. Ou que, por vontade própria, simplesmente optou por não fazer uma faculdade. Afinal de contas, só o pensamento limitado é capaz de considerar alguém superior por ter um bacharelado ou uma licenciatura. Posso ter mais conhecimento técnico em determinada área, mas isso não faz de mim – necessariamente – uma pessoa melhor.

O Senado Federal havia derrubado essa aberração presente no artigo 295 do Código de Processo Penal ("Serão recolhidos a quartéis ou a prisão especial, à disposição da autoridade competente, quando sujeitos a prisão antes de condenação definitiva: os diplomados por qualquer das faculdades superiores da República" – parágrafo único, inciso VII), mas a Câmara os Deputados barrou a mudança.

Rodrigo Janot, procurador geral da República, também ajuizou no Supremo Tribunal Federal uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental contra o mesmo inciso. Segundo ele, o item "viola a conformação constitucional e os objetivos fundamentais da República, o princípio da dignidade humana e o da isonomia". Segundo sua argumentação, a separação não deveria ocorrer por conta do nível educacional, mas da natureza do delito, da idade e do sexo.

Coincidentemente, o processo (ADPF 334) tinha como relator o ministro Teori Zavascki, que também cuidava da Lava Jato e dos seus vários réus com curso superior.

Concordo com a opinião de juristas que ressaltam que estamos tratando de prisão provisória. Ou seja, considerando que, antes do julgamento e de uma condenação, há a presunção da inocência, seria importante que o regime desses presos fosse diferenciado.

Ou seja, toda prisão provisória deveria ser em cela especial – do iletrado ao que tem pós-doutorado. Assim, não seria a concessão de um privilégio, mas a garantia de um direito.

O atual Código de Processo Penal passou a vigorar em 1942, quando poucos tinham acesso ao ensino superior – situação que está mudando no Brasil. Antes, o número de faculdades particulares era pequeno e as suas mensalidade altas, ao passo que os vestibulares das universidades públicas eram duros o bastante para quem estudou a vida inteira em escola pública e não tinha dinheiro para pagar um cursinho.

Não que o acesso ao ensino superior tenha se universalizado – longe disso. Mas ao mesmo tempo que aumentou o número de vagas em públicas federais (ainda que continuem bem insuficientes, diga-se de passagem), explodiu a quantidade de faculdades privadas, com mensalidades acessíveis ou possibilitadas por Fies e Prouni – muitas delas caça-níqueis e com qualidade duvidosa. O fato é que muita gente do "andar de baixo" passou a obter diplomas de nível superior.

Quando muitos têm uma calça exclusiva, ela deixa de ser exclusiva e passa ser popular. Daí, quem detinha a exclusividade passa a pensar em outra forma de se diferenciar. Nesse sentido, qual seria o próximo passo? A construção de mais celas especiais ou a criação de outros critérios para garantir que nós, da elite, continuemos separados da ralé, agora com diploma?

Por enquanto o andar de cima não perdeu nada, por mais que os mais ricos reclamem que o povaréu tupiniquim ascendeu e está transformando aeroportos em rodoviárias e tirando seu sono.

Mais simples e melhor continua sendo o método: "Tenha um bom advogado e seja feliz".

Com isso, fica mais fácil cometer barbaridades e ficar em um lugar "diferenciado" até o julgamento. E, mesmo julgado, permanecer separado da massa até que todos os recursos sejam esgotados – isso quando não consegue ficar em casa mesmo em um processo que pode levar mais tempo do que aquilo que lhe resta de vida.

Com um bom advogado, é possível conseguir habeas corpus de forma rápida. Por que eles compram resultados? Não. Mas porque usam todos recursos possíveis para garantir tudo aos seus clientes – coisa que a xepa não consegue (ainda mais com a estrutura insuficiente à disposição das Defensorias Públicas).

Talvez a cela especial acabe quando o acesso ao ensino superior tornar-se tão comum quanto a alfabetização – o que pode levar algum tempo, mas há de acontecer.

Ou seja, não terá sido mérito nosso como sociedade essa mudança, mas do tempo, que – inexoravelmente – transforma tudo. Ou quase tudo. Precisamos de leis com previsão de privação de liberdade para crimes graves – não para coisas ridículas como venda de maconha ou roubo de um xampu. E que sejam punidas, conforme essas leis, as pessoas que causaram grandes danos à vida dos outros ou à sociedade.

Muita gente economicamente graúda foi em cana por conta de operações como a Lava Jato, o que é um alento. Mas, com isso, fica a impressão de que nosso sistema de Justiça está melhorando – o que não é verdade necessariamente. Isso só acontecerá quando nossas prisões não estiverem mais superlotadas de pobres, muitos deles tento cometido crimes ridículos. E que todas as pessoas tenham o mesmo tratamento, independentemente de quanto têm na conta bancária.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.