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Leonardo Sakamoto

No discurso, governo quer "pacificar" o país. Mas está em guerra com o povo

Leonardo Sakamoto

16/02/2017 12h55

Michel Temer tem repetido, exaustivamente, que sua função é trazer paz ao país. Por exemplo, no dia 12 de maio de 2016, quando discursou pela primeira vez como presidente interino afirmou que "é urgente pacificar a nação e unificar o Brasil". E, em 31 de agosto, ao tomar posse após consumada a cassação do mandato de Dilma Rousseff, afirmou à imprensa que "é hora de tentar pacificar o Brasil".

Mas "pacificar" pode ter vários significados. No caso do governo Temer, o escolhido é aquele que aponta para a manutenção do silêncio. O direito de não reclamar, criticar, espernear diante de uma redução profunda nos direitos dos trabalhadores e das populações mais pobres e vulneráveis adotada para alavancar a economia sem que os privilégios dos mais ricos sejam alterados.

"A marca do governo é o diálogo. E desta forma conseguimos pacificar a relação de empregados e empregadores nessa proposta de modernização trabalhista", afirmou Temer em sua conta no Twitter no dia 11 de janeiro deste ano. Considerando que o suposto diálogo tem ocorrido com um grupo que não é representativo do universo dos trabalhadores e que a proposta vai permitir que acordos entre patrões e empregados, mesmo que desvantajosos para os trabalhadores, possam estar acima da lei, a pacificação significa tratar a população como frango em granja ou boi em curral.

Portanto, faz muito sentido a frase de caminhoneiro destacada por Michel Temer como exemplo: "não fale em crise, trabalhe".

Por que um acampamento do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto na frente do prédio da Presidência da República, na avenida Paulista, exigindo recursos para programas de moradia aos mais pobres, é uma violência à cidade e um acampamento em frente à Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, na mesma avenida, exigindo o impeachment de uma presidente é uma manifestação da democracia?

Na cartilha de parte das elites política e econômica brasileiras, uma manifestação só é pacífica se estiver de acordo com seus objetivos. Caso contrário, é uma violência sem tamanho. Para eles, ser pobre e ser pacifista é morrer em silêncio, em paz, seja de fome, porrada, bala, doença ou velhice – que será curta, dado que aposentadoria se tornará produto de luxo no Brasil.

Leio e ouço reclamações da violência de protestos quando estes vêm dos mais pobres entre os mais pobres – "um estupro à legalidade" – feitas por uma legião de pés-descalços empunhando armas de destruição em massa, como lonas prestas e cartazes. Ou contra povos indígenas, cansados de passar fome e frio, reivindicando territórios que historicamente são deles, na maioria das vezes com flechas, enxadas e paciência. Ou ainda professores que exigem melhores salários e resolvem ir às ruas para mostrar sua indignação e pressionar para que o poder público mude o comportamento. Todo esse pessoal é chamado de vândalo.

Vândalos somos nós que permitimos que o Estado seja o instrumento para que a vida dos outros seja uma merda.

Uma das grandes lições não aprendidas com o fim da ditadura militar brasileira é que não se curam feridas simplesmente deixando-as cicatrizar com o tempo. Pelo contrário, se forem apenas cobertas com curativo ao invés de expostas, lavadas, limpas e devidamente tratadas, correm o risco de infeccionar, piorando o problema sistêmico.

O Brasil não conseguiu tratar suas feridas para que cicatrizassem em nossa redemocratização. Apenas as tapou com a cordialidade que nos é peculiar, o bom e velho, deixa-pra-lá, em nome de um suposto equilíbrio e da governabilidade. Dessa forma, o Estado não deixou claro aos seus quadros que usar da violência, torturar, matar não são coisas aceitáveis. Como eram durante a ditadura.

Agora, o governo Temer, com o apoio de uma parte expressiva do empresariado, busca "pacificar" a nação, resolvendo o problema de caixa do governo, cortando de quem já não tem, sem que – antes – as feridas decorrentes dessas estruturas de injustiça social e tributária sejam colocadas à luz do dia, lavadas e tratadas devidamente. Ou seja, sem que possamos discutir, coletivamente, se queremos rasgar a Constituição Federal de 1988 – que garante que dignidade não é monopólio de ninguém.

O Brasil não saiu dividido do processo de crise política aprofundado nas eleições gerais de 2014 e que teve no impeachment seu ponto de clímax (até aqui, claro). Ele está dividido desde que o primeiro branco obrigou o primeiro indígena a cortar e carregar toras de pau-brasil para o porão de algum navio. Da mesma forma que nosso racismo sistêmico não deixou de existir com a Lei Áurea, pelo contrário, ganhou apenas ares de hipocrisia.

A paz no Brasil pode vir de duas formas: se os mais pobres aceitarem calados a sua espoliação pelo governo e, assistindo felizes à novela no fim do dia (que explica como um brasileiro de bem deve se comportar), sentirem-se realizados porque seu sacrifício criará um país mais rico e forte para os sobreviventes.

Ou, se os mais pobres, contestando as regras que giram a engrenagem, decidirem que sua dignidade aqui e agora também conta, exigindo – seja cruzando os braços ou fechando ruas – que o sacrifício para a melhora do país seja cobrado de todos, ricos e pobres, de acordo com o que cada um pode contribuir, sem rifar seu presente ou o seu futuro.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.