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Leonardo Sakamoto

Cinco provas de que o Sr. Diálogo foi morto pelo Dr. Ignorância no Brasil

Leonardo Sakamoto

20/02/2017 20h52

Encarar tudo como se a vida se resumisse a duas opções, vida ou morte, ordem ou caos, Palmeiras ou Corinthians, é sintomático de sociedades em que o Dr. Diálogo foi cruelmente assassinado pela Sr. Ignorância. Com o punhal do maniqueísmo. Na sala de estar do país.

São obviedades, mas nunca é demais repetir:

1) Se alguém…

Critica a Reforma da Previdência proposta pelo governo federal.

Talvez…

Não ignore que a população brasileira vem envelhecendo e que o sistema de Previdência Social precisa de uma rediscussão e de mudanças para que os que precisam dele não fiquem desamparados no futuro.

Mas…

Seja contra os pobres arcarem com o custo maior disso. Eles, que começam a trabalhar mais cedo, passam a vida em subempregos que não contam tempo de aposentadoria, esfolam-se ao cortar cana de açúcar ou carregar sacos de cimentos nas costas e morrem antes da média da população, serão os principais prejudicados.

2) Se alguém…

Critica a Reforma do Ensino Médio proposta pelo governo federal.

Talvez…

Não ignore que debater essa etapa de ensino é urgente, pois o desempenho é sofrível, o currículo é desinteressante e a evasão, monstruosa – 1,7 milhão de jovens entre 15 e 17 anos estão fora da escola.

Mas…

Considera que uma reforma imposta de cima para baixo é um desrespeito e uma violência aos milhões de profissionais que atuam em educação, aos militantes que participam dos inúmeros fóruns e instâncias de educação no país, aos alunos que ocupam escolas em busca de uma voz e aos pais e mães que acompanham com preocupação a formação dos filhos. Por exemplo: quem vai bancar a universalização do tempo integral e o consequente pagamento de bolsas para jovens que trabalham para ajudar no sustento da casa? O montante sinalizado pelo governo não dá nem para a coxinha.

3) Se alguém…

Critica a Reforma Trabalhista proposta pelo governo federal.

Talvez…

Saiba que a legislação trabalhista brasileira precisa ser depurada, reorganizada, simplificada e atualizada, o que resultará em benefício ao trabalhador e ao empregador. E que isso depende de muito diálogo entre governo, trabalhadores e empresários.

Mas…

Ache um absurdo que o pacote proposto seja a antiga pauta de reivindicações de associações de empregadores do campo e da cidade para aumentar a sua lucratividade e competitividade. E que a base dessa reforma não inclua a discussão sobre o aumento da produtividade através da capacitação da força de trabalho e da melhoria de sua qualidade de vida, mas seja feita com a extensão das jornadas de trabalho, a flexibilização das horas extras e a diminuição da proteção social através da ampliação da terceirização legal.

4) Se alguém…

Criticava a PEC do Teto proposta pelo governo federal.

Talvez…

Entendesse que estamos em uma grande crise econômica e sacrifícios são necessários.

Mas…

Acredita que, ao aprovar medidas que limitam o crescimento de investimento público nos próximos 20 anos, o governo jogou as contas da crise nas costas dos mais pobres (que dependem de educação e saúde públicas) e protegeu os mais ricos – que seguem sem pagar impostos sobre dividendos recebidos de empresas e taxas sobre grandes fortunas e grandes heranças e a continuam com a mesma alíquota de imposto de renda da classe média, quando essa deveria ser maior.

5) Se alguém…

Critica o governo Temer.

Talvez…

Não seja um petista saudoso, um comunista ardoroso ou o filho do Tinhoso.

Mas…

Acredite que, do jeito que as reformas estão propostas, dezenas de milhões ficarão à margem de sua dignidade e nós seguiremos como um dos recordistas em injustiça social. Enquanto isso, a cúpula do governo (que vai salvando o pescoço dos escândalos de corrupção) vai agradando a elite econômica – que, convenhamos, sempre foi muito feliz por aqui.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.