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Leonardo Sakamoto

Ao contrário do que diz o governo, terra enche barriga. E terra também mata

Leonardo Sakamoto

10/03/2017 16h55

O ministro da Justiça, Osmar Serraglio, disse que era a hora de "parar com essa discussão sobre terras" para as populações indígenas. Segundo ele, em declaração à Folha de S.Paulo, terra não enche barriga.

Imediatamente me lembrei de algumas viagens para reportagens que realizei no interior do Brasil e a países da África e da Ásia, nas quais famílias me contaram que, no desespero, já haviam feito biscoitos de barro, agua e capim para crianças.

Ou seja, quando os mais básicos direitos são negados (como o direito de poder ocupar um território e plantar, colher e viver) e a pobreza extrema se impõe, terra enche barriga sim.

O que o ministro se esqueceu de dizer é que terra também mata.

Os assassinatos e desaparecimentos de lideranças indígenas em locais de disputa com fazendeiros, como o Mato Grosso do Sul, são prova disso. Talvez Osmar Serraglio tenha esquecido de mencionar isso porque se elegeu com recursos de empresas ligadas ao agronegócio e apoiou na Câmara dos Deputados ações para dificultar a demarcação de terras indígenas.

A Fian Brasil, em parceria com o Conselho Indigenista Missionário, realizou uma pesquisa para medir a insegurança alimentar e nutricional em três comunidades Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul – Guaiviry, Apyka'i e Kurusu Ambá. As três são palco de disputas por territórios tradicionais e tiveram lideranças assassinadas.

Em 2013, 4,8% dos domicílios brasileiros com pessoas com menos de 18 anos se encontravam em insegurança alimentar grave. Enquanto isso, em comunidades indígenas avaliadas, esse índice era de 28%.

Em 76% dos domicílios da pesquisa, a pessoa entrevistada afirmou que, no mês anterior a setembro de 2013, houve ocasião em que crianças e jovens da casa passaram um dia todo sem comer e foram dormir com fome, porque não havia alimento. Menos de 40% recebiam o Bolsa Família.

A análise dos dados do relatório "O Direito Humano à Alimentação Adequada e à Nutrição do povo Guarani e Kaiowá", decorrente da pesquisa, aponta como causas estruturantes do problema de acesso aos alimentos, a falta de respeito, proteção e promoção dos direitos ao território e à sua identidade cultural. O oposto do que afirma o ministro.

Cerca de 98% das terras indígenas brasileiras estão na região da Amazônia Legal. Elas reúnem metade dos povos indígenas. A outra metade está concentrada nos 2% restantes do país. Sem demérito para a justa luta dos indígenas do Norte, hoje, o maior problema se encontra no Centro-Sul, mais especificamente no Mato Grosso do Sul – que concentra a segunda maior população indígena do país, só perdendo para o Amazonas.

Há anos, essa população aguarda a demarcação de mais de 600 mil hectares de terras no Estado, além de algumas dezenas de milhares de hectares que estão prontos para homologação ou emperrados por conta de ações na Justiça Federal por parte de fazendeiros.

Ao longo do tempo, os Guaranis Kaiowá foram sendo empurrados para reservas minúsculas, enquanto fazendeiros, muitos dos quais ocupantes irregulares de terras, esparramaram-se confortavelmente pelo Estado.

Incapazes de garantir qualidade de vida, o confinamento em favelas-reservas acaba por fomentar altos índices de suicídio e de desnutrição infantil, além de forçar a oferta de mão de obra barata. Pois, sem alternativas, tornam-se alvos fáceis para os aliciadores e muitos acabaram escravizados em usinas de açúcar e álcool no próprio Estado nos últimos anos.

E isso quando esse "território" não se resume a barracas de lona montadas no acostamento de alguma rodovia com uma excelente vista para a terra que, por direito, seria deles. Em outras palavras, no Mato Grosso do Sul, a questão fundiária envolvendo comunidades indígenas provoca fome, suicídios e mortes.

 

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.