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Leonardo Sakamoto

Mais uma chacina: A periferia de SP é um frigorífico de "carne de segunda"

Leonardo Sakamoto

05/04/2017 09h57

Local de chacina no bairro Jaçanã, em São Paulo (Foto: Angelo/Sigmapress/Folhapress)

Dez pessoas morreram em duas chacinas ocorridas na noite desta terça (4) em São Paulo. Sete em um bar no Jaçanã, zona norte da capital, e outras três que estavam em veículos, no Campo Limpo, zona sul. Em ambos os casos, atiradores usavam motos.

O Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa está investigando ambos os casos.

O segundo caso ocorreu a algumas quadras da casa onde cresci e onde meus pais ainda moram. Conheço muito bem a região e acompanhei o seu desenvolvimento. E tanto quanto a violência em si, choca verificar, com o passar dos anos, que a região mais rica da cidade segue pouco se importando com o que acontece em suas franjas.

A imprensa tem dado mais destaque às mortes quando elas ocorrem em pacotes, como nas chacinas, do que antes. Mas o tamanho e a extensão da indignação da "opinião pública" diante da morte estúpida de alguém de um bairro rico e de uma chacina estúpida ocorrida em regiões pobres ainda é abismo.

Claro que não é só por lá. O país assiste a centenas de assassinatos de trabalhadores rurais indígenas, quilombolas e ribeirinhos em conflitos agrários (e daqueles que ousaram os ajudar), massacres de sem-teto e população em situação de rua, mortes de homossexuais e transexuais com uma indignação menor que a subida do preço do tomate. Isso quando não estamos falando do genocídio de jovens negros e pobres na periferia de grandes cidades, que conta com a simpatia de muita gente.

Nas redes sociais, a filosofia de botequim joga na vala comum o assassinato de "culpados" – que não tiveram direito a um julgamento justo e receberam pena de morte – e "inocentes" – que mereceram, porque "se levaram bala, boa coisa não tinham feito".

Independentemente de quem é a culpa direta em cada um desses casos, de criminosos ou do Estado, muitos carrascos poderiam dizer que estavam "cumprindo ordens", como os nazistas em Nuremberg. Pois, o que ocorre em parte dessas chacinas foi um servicinho sujo que vários cidadãos pacatos e "de bem" desejam em seus sonhos mais íntimos. Uma "limpeza social" de "classes perigosas" ou de "entraves ao progresso". Daí para a chegada de um "salvador da pátria", que garanta paz através da guerra e, no caminho, destrua a democracia, é um pulo.

Não é que a nossa sociedade não consegue apontar e condenar culpados por todas as chacinas, urbanas e rurais, como deveria. Parece que ela simplesmente não faz muita questão.

Como sempre digo por aqui, ninguém mata jovens impunemente em Ipanema ou em Perdizes. Por que isso ocorre nos Extremos da Zona Norte do Rio ou nos Extremos da Zona Sul e Norte de São Paulo? Porque lá a "carne de segunda" é preocupação menor do que faltar a picanha ou o bife ancho para o churrasco.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.