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Leonardo Sakamoto

Trabalhadores só vão perceber que algo os atingiu quando for tarde demais

Leonardo Sakamoto

21/04/2017 09h36

Quando eu entrava em disputas de Banco Imobiliário e War (aviso aos jovens:  jogos de tabuleiro), decidíamos mudar as regras para fazer com o que elas andassem mais rápido. Quem já passou horas em intermináveis contendas com dados e pecinhas (sim, havia diversão antes do Pokémon Go e do Candy Crush), tentando "Conquistar a Totalidade da Ásia e da América do Sul", sabe bem do que estou falando.

Depois, a gente cresce e percebe que há quem tente o mesmo na vida real. Por exemplo, defenestrar parte da legislação que regula o mercado de trabalho no meio do jogo é uma opção defendida para acelerar o crescimento econômico. O problema é que a realidade – ao contrário dos jogos de tabuleiro – é feita de pessoas de carne e osso que não podem simplesmente recomeçar, com menos dignidade, no meio do caminho.

Informatizar, desburocratizar, reunir impostos e tornar mais eficiente a relação de compra e venda da força de trabalho é possível e desejável e certamente irá gerar boa economia de recursos para empresários e de tempo para trabalhadores. Desonerar a folha de pagamento em alguns itens, como diminuir a contribuição previdenciária para setores que usam grande quantidade de mão de obra é possível também. Isso sem contar que ninguém é contra sobrepor o que é negociado entre patrões e empregados/sindicatos ao que está legislado – desde que isso signifique ganhos reais para ambos os lados. Para tanto, seria necessário um melhor equilíbrio de forças, com sindicatos mais fortes e a garantia de contrato coletivo de âmbito nacional para mantendo responsabilidade do setor econômico para os subcontratados.

O problema é que por trás do discurso do "vamos avançar" presente entre os defensores desta Reforma Trabalhista está também o desejo de tirar do Estado o papel de mediador da relação entre patrões e empregados, deixando-os organizando suas próprias regras. Quando um sindicato é forte e seus diretores não jogam golfe com os diretores das empresas, nem recebem deles mimos, ótimo, a briga é boa e é possível obter mais direitos do que aquele piso da lei. Mas, e quando não, faz-se o quê? Rezamos?

Quando alguém promete uma reforma trabalhista sem tirar direitos dos trabalhadores irá provavelmente:

a) mudar a CLT e acrescentar direitos aos trabalhadores e tirar dos empresários (posso contar também a do papagaio que passava trote ao telefone);
b) desenvolver um novo conceito do que seja um direito trabalhista (situação em que o pintor surrealista René Magritte diria: "isto não é um cachimbo");
c) diminuir a arrecadação do Estado junto às empresas e manter os direitos dos trabalhadores (esperando que o país quebre em 3, 2, 1…);
d) vai operar um milagre mais espantoso do que aquele de multiplicar pães e peixes para uma multidão faminta realizado pelo grande sábio barbudo (neste caso, Jesus, não Marx).

A sociedade mudou, a estrutura do mercado de trabalho mudou, a expectativa de vida mudou. Portanto, as regras que regem as relações trabalhistas e a Previdência Social podem e devem passar por discussões de tempos em tempos.

Ou seja, caso se encontrem pontos de convergência que não depreciem a vida dos trabalhadores e não mudem as principais regras do jogo no meio de uma partida sem a concordância de todos, as relações trabalhistas podem passar também por modernização. Tem muita coisa na CLT que passou da hora de ser alterada. Mas o seu coração – impedir que o natural desequilíbrio entre trabalhador e capital seja aprofundado – deve ser preservado.

Essa discussão não pode ser conduzida de forma autoritária ou em um curto espaço de tempo. Pois essas decisões não devem servir para salvar o caixa público, o pescoço de um governo e o rendimento das classes mais abastadas (que brigam contra impostos sobre lucros e dividendos e sobre a progressividade do imposto de renda), mas a fim de readequar o país diante das transformações sociais sem tungar ainda mais o andar de baixo.

Por exemplo, falar em imposição de 25 anos de contribuição para assalariados urbanos e rurais e 15 anos de contribuição para trabalhadores rurais da economia familiar, como pequenos produtores e pescadores, sem considerar que os mais pobres começam a trabalhar mais cedo, é desconhecer a realidade – para ser polido. Em lugares em que estatisticas de mortalidade apontam para uma sobrevida menor após os 60 anos que a média do país, como o interior Maranhão, os aposentados não têm o mesmo tempo para usufruir de suas pensões que em lugares onde a segurança social é maior.

O Congresso já aprovou a terceirização de todas as atividades de uma empresa – e não apenas serviços secundários, como é hoje. É claro que a relação entre prestadoras de serviço e empresas-mãe precisam de regras melhores no Brasil, porque muita gente fica ao relento. Mas a aprovação da terceirização da atividade-fim do jeito que foi feita, dando a possibilidade de externalizar qualquer função de uma empresa, vai piorar a vida de muita gente e reduzir a arrecadação da própria Previdência. Armamos uma bomba-relógio e o próprio Ministério da Fazenda sabe disso.

Agora o governo quer aprovar a Reforma Trabalhista, permitindo que convenções e acordos coletivos de trabalho negociados entre patrões e empregados prevaleçam sobre a legislação trabalhista, mesmo que isso signifique perdas aos trabalhadores. Como já disse, negociar tendo como base nosso sistema sindical, que em muitos casos serve aos interesses dos próprios sindicalistas e não dos trabalhadores, será entregar o galinheiro à raposa. Jornadas de trabalho mais longas, que devem ter impacto na segurança e na saúde dos empregados e sem o devido pagamento de horas-extras, são esperadas após o Congresso passar a lei.

Antes de qualquer reforma, seria importante melhorar a regulação do mercado de trabalho (aliás, regulação é algo péssimo por aqui), desenvolver a qualificação profissional de forma a gerar empregos mais sólidos, melhorar o sistema de ingresso nesse mercado (o que inclui dar efetividade ao serviço nacional de intermediação de mão de obra, pois o que existe em boa parte do país é o bom e velho "gato" intermediando) e, é claro, a redução na jornada sem redução de salário – pleiteada pelos trabalhadores e empurrada há anos.

O cidadão deveria ter o direito de escolher um mandatário de acordo com a agenda que ele propõe para os direitos trabalhistas e previdenciários. Com um programa de governo debatido, votado e eleito. Mas, aí, desconfio que não aconteceriam reformas.

Parte dos jogadores está mudando as regras no meio do jogo, na surdina. Os demais só perceberão o golpe quando for tarde demais e eles tiverem sido excluídos do tabuleiro.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.