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Leonardo Sakamoto

Terceirização e Reforma vão facilitar "pejotização", afirmam especialistas

Leonardo Sakamoto

24/04/2017 15h01

Aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pela Presidência da República, a lei que permite a terceirização de todas as atividades de uma empresa pode, sim, facilitar a contratação de pessoas que recebem seu salário através de empresas individuais (as chamadas "PJs"), apesar de preencherem todos os requisitos de um vínculo empregatício. Essa situação, de acordo com especialistas ouvidos por este blog, está sendo reafirmada pelo projeto de Reforma Trabalhista – que tramita à toque de caixa na Câmara dos Deputados.

Quando um empregado responde a um chefe, bate ponto no serviço, cumpre tarefas estabelecidas, recebe remuneração periodicamente e depende dele economicamente e não desenvolve atividades a outras empresas, há um vínculo empregatício.

Para tarefas ou serviços pontuais ou que não se enquadram nas condições acima, é possível a contratação de indivíduos com empresas abertas em seu nome. O problema é que há empresas que fraudam a legislação trabalhista e contratam pessoas jurídicas individuais para serviços de empregados regulares ao invés de pessoas físicas como prevê a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). A leis aprovadas não liberam a fraude, mas criam o ambiente para ela se desenvolver e dificultam sua punição.

"Uma coisa é a letra da lei. Outra, sua interpretação. Apesar da pejotização continuar sendo ilegal, será mais difícil para um PJ comprovar o vínculo empregatício", analisa Marcus Barberino, juiz do Trabalho da 15a Região e que tem atuado com casos envolvendo grandes empresas e terceirização ilegal.

"Quando a contratação da pessoa jurídica para a atividade-fim era proibida, o empregador é que tinha que provar que não havia vínculo diante das evidências. A partir de agora, há uma presunção de licitude tanto na constituição da pessoa jurídica quanto na celebração do contrato de prestação de serviços em si", afirma Barberino. "Ao menos, parte dos magistrados deve demandar que os dois lados provem que a relação é fraudulenta ou não, o que dificultará para o lado do trabalhador."

"A ampliação irrestrita da terceirização de serviços para todas e quaisquer atividades do tomador certamente irá estimular e impulsionar essa fraude à relação de emprego, mascarada por um pseudonegócio jurídico estabelecido entre pessoas jurídicas", afirma Tiago Muniz Cavalcanti, procurador do Trabalho e responsável pela Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo no Ministério Público do Trabalho.

"Se, atualmente, a contratação de empresas prestadoras de serviços na atividade finalística enseja, de pronto, o reconhecimento do caráter fraudulento do negócio, a legitimação da terceirização em todas as atividades empresariais desajuda e desajusta o combate à pejotização e às fraudes trabalhistas de um modo geral", analisa o procurador.

De acordo com Renato Bignami, doutor em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela Universidade Complutense de Madrid e auditor fiscal do trabalho, "ainda que não explicitamente incentivada no texto da lei, a pejotização poderá sim sofrer um processo de revitalização e proliferação". Segundo ele, isso deve ocorrer "por conta da falta de clareza das propostas em estabelecer medidas de cautela que possam ser utilizadas por trabalhadores fraudados e frustrados com eventual perda de direitos mas também por empresários de boa-fé que tenham embarcado em interpretações da lei carentes de fundamento e desvinculadas do contexto jurídico em que foram traçadas".

O relator da Reforma Trabalhista, Rogério Marinho (PSDB-RN) propôs uma solução para evitar a "pejotização": impedir que uma empresa que demitiu um empregado celetista o recontrate na forma de uma PJ por 18 meses. Essa proposta teria algum efeito em barrar a pejotização, de acordo com os especialistas ouvidos por este blog, se o trabalho desse indivíduo seja tão especializado que possa ser feito apenas por ele mesmo. Em outras palavras, que ele seja insubstituível – o que não é a maioria dos casos.

"Todos veem que pejotização se trata de uma fraude, ao ponto de se explicitar no projeto de Reforma Trabalhista que o empregado dispensado não poderá ser contratado como 'pessoa jurídica' por certo lapso de tempo. Mas não poderia ser contratado em nenhum momento. O que comprova que isso é um fenômeno social que se espraia em certos setores da economia", analisa o juiz Marcus Barberino.

Diante de dúvidas deixadas pelo texto da lei que ampliou a terceirização (o então PL 4302/1998), o relator quer que a Reforma Trabalhista seja usada para deixar claro os limites da contratação de prestadores de serviço. Contudo, ao invés de trazer salvaguardas ao trabalhador, ele faz o contrário.

Diz seu substitutivo, artigo 3o, parágrafo 2o: "O negócio jurídico entre empregadores da mesma cadeia produtiva, ainda que em regime de exclusividade, não caracteriza o vínculo empregatício dos empregados da pessoa física ou jurídica contratada com a pessoa física ou jurídica contratante nem a responsabilidade solidária ou subsidiária de débitos e multas trabalhistas entre eles".

Segundo os especialistas ouvidos por este blog, a depender do texto final, isso poderá ser aplicado às empresas terceirizadas e às PJs.

"Além disso, a proposta cria a figura do trabalhador que presta serviços com exclusividade e de forma contínua sem, no entanto, perder sua condição de autônomo. Em outras palavras, é conivente com a fraude por alijar da proteção do vínculo de emprego o trabalhador não eventual, economicamente dependente do tomador dos serviços, de quem recebe as diretrizes para a execução do trabalho", explica Cavalcanti.

Pejotização e seu contexto – De acordo com Marcus Barberino, essa tentativa da proposta de alteração da CLT de blindar os contratos celebrados entre pessoas jurídicas produzirá o mesmo efeito que a alteração do artigo 442 da mesma CLT, quando se pretendeu imunizar as cooperativas de trabalho em 1994. Houve setores da economia que passaram a usar esse instituto jurídico para contratar pessoas físicas através das pessoas jurídicas de cooperativas.

"Como não eram efetivamente cooperativas de trabalho e atuavam dentro do mercado de trabalho como mera intermediação de mão de obra, a litigiosidade disparou e o Poder Judiciário passou mais de dez anos para debelar a crise do marco regulatório e restabelecer o equilíbrio", afirma.

De acordo com ele, agora a história se repete, mas de forma mais abrangente. "Ao invés de olhar o problema, ou seja, a existência de multiplicidade de regimes tributários que permitem a elisão tributária, tenta-se parar a roda da história e da ciência jurídica, com sérias repercussões inclusive no combate ao trabalho escravo contemporâneo e o tráfico de pessoas."

Isso é verificado por Renato Bignami no combate ao trabalho escravo em São Paulo. Ele afirmou que, neste momento de reformas, há uma tendência para o uso disseminado da pejotização com a esperança de que os trabalhadores não sejam capazes de revertê-las.

"Em auditoria recente de combate ao trabalho escravo realizada em uma confecção do Brás [bairro na região central da capital paulista], por exemplo, todos os trabalhadores que costuravam para as oficinas de costura terceirizadas eram PJs, simulando contratos de prestação de serviços autônomos quando, na prática, cumpriam jornada de trabalho exaustiva em condições bastante adversas de trabalho", afirma Bignami. "É a cristalização social da ausência de travas legais que possibilitem a restrição do uso de formas fraudulentas de trabalho nos esquemas produtivos que envolvam a prestação de serviços terceirizados."

Medo de não ser contratado – A Emenda 3, que integrou o projeto que criou a Super Receita, propunha que vínculos empregatícios entre empregados e patrões poderiam ser apontados apenas pela Justiça do Trabalho, mesmo quando fossem encontradas irregularidades.

Caso estivesse em vigor, ela dificultaria o reconhecimento de fraudes na contratação de PJs – o que dependeria não de fiscalizações espontâneas de auditores do Ministério do Trabalho e de inspeções de procuradores do Ministério Público do Trabalho, mas de trabalhadores solicitando à Justiça que o vínculo fosse apontado.

O que trabalhadores nem sempre fazem por medo de perder o emprego ou não conseguir trabalho em nenhuma outra empresa da área por entrar em "listas de exclusão" de ex-empregados que processam empregadores. Para saber mais sobre essas relações, que costumam circular de forma anônima dentro de um mesmo setor econômico, sugiro a leitura de um texto sobre essas listas neste link.

A emenda foi proposta atendendo à solicitação de empresas de comunicação e entretenimento de acordo com assessores parlamentares que falaram a este blog. Aprovada pelo Congresso Nacional, a Emenda 3, após mobilização de centrais sindicais, entidades de classe, movimentos e organizações sociais e associações de magistrados, procuradores e auditores, acabou sendo vetada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Pesou para que os parlamentares não derrubassem o veto mobilizações que juntaram milhares de pessoas contra a lei, como passeatas na região do ABC paulista – apesar dos editoriais favoráveis nos veículos de comunicação e os anúncios veiculados por entidades patronais.

Mas a demanda por poder "flexibilizar" essa proibição continuou na ação de lobistas nos corredores do Congresso Nacional. E pode surtir efeito com a aprovação da lei da terceirização ampla e da Reforma Trabalhista.

"Não é por falta de lei. A lei atua no campo do dever ser. A lei quer civilizar o Brasil. Mas há empresas que atuam no campo do ser. Nele vale a realidade da força da grana, da força da sociabilidade passiva e, se nada resolver, a força do tacape e da vingança. Ou trabalha segundo as minhas regras ou não trabalha", conclui o juiz Barberino.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.