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Leonardo Sakamoto

Querem que você acredite que a Reforma da Previdência não atinge os pobres

Leonardo Sakamoto

05/05/2017 18h11

A qualquer momento que ligamos a TV ou entramos em um site de notícias, lá está Michel Temer dizendo que a Reforma da Previdência não atingirá os pobres, servindo apenas para tirar privilégios dos mais ricos que se aposentam cedo no país. O discurso, contudo, carece de fundamento.

Há quem se aposente cedo demais, isso é verdade. Como os parlamentares. E a leis deveriam ser alteradas para tratar desses casos – mas dificilmente serão. Enquanto isso, o poder público quer exigir as mesmas regras duras para a aposentadoria de uma mulher assalariada rural pobre que vive em uma cidade no interior do Nordeste e um homem advogado pós-graduado que trabalha com estabilidade em um repartição pública federal em Brasília.

Não raro, membros da administração pública afirmam que o miserável no Brasil nem consegue se aposentar e, portanto, a Reforma da Previdência Social não diz respeito a ele. Primeiro, a reforma o afeta sim, como pode se visto abaixo. Além disso, apenas quem vive em uma redoma de modelos matemáticos acredita que uma família que recebe dois salários mínimos por mês não é pobre num país com baixa qualidade ou inexistência de serviços públicos.

Qual o problema?

Exigir 25 anos de contribuição ininterrupta para trabalhadores assalariados urbanos e rurais como o mínimo de tempo de contribuição para alguém poder se aposentar é ignorar a realidade brasileira. Isso equivale ao pagamento de 300 parcelas mensais.

Dados da Previdência Social trazidos pela Folha de S.Paulo mostram que 79% dos trabalhadores que se aposentaram por idade no ano de 2015 conseguiram contribuir menos de 25 anos. Sendo que 13,9% (entre 21 e 24 anos), 31% (entre 16 e 20 anos) e 34% (15 anos).

Enquanto isso, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) afirma que, em 2014, a média de contribuição foi de 9,1 meses a cada ano. Os motivos são a alta rotatividade do mercado de trabalho e a grande informalidade.

Ou seja, para cumprir 15 anos de contribuição, considerando essa média de nove meses de contribuição a cada 12, uma pessoa precisa, na prática, de 19,8 anos para se aposentar. Considerando 25 anos de mínimo, o tempo de contribuição efetivo terá que ser de 33 anos. Teremos pessoas que contribuirão, mas não se aposentarão, se aprovadas as novas idades mínimas de 65 e 62 anos, para homens e mulheres respectivamente. Com "sorte", acabarão caindo na fila da assistência social para idosos mais pobres – o Benefício de Prestação Continuada (BPC).

Benefício que, exatamente por conta disso, está subindo a idade mínima de 65 para 68 anos (proposta do relator da reforma) ou 70 anos (proposta do governo federal), a fim de dificultar o seu acesso pela massa de idosos que o procurarão. Quem está na categoria de pobreza extrema, que o governo diz que não será punido, terá sim que esperar mais tempo.

Além do mais, como o acesso ao BPC é para famílias com renda per capita inferior a 25% do salário mínimo, nem todos os idosos pobres terão acesso a ele. Só aqueles que são considerados matematicamente pobres ou extremamente pobres por padrões internacionais. Os outros, que não entrarem no corte, vão ficar no limbo – sem receber o benefício, mas sem conseguir se aposentar.

Ao mesmo tempo, o relator da reforma na Câmara dos Deputados, Arthur Maia (PPS-BA), informou que a idade mínima para trabalhadores rurais da economia familiar poderem se aposentar permanece igual para homens (60 anos) e sobe para mulheres (de 55 para 57 anos). Isso é menos que a proposta do governo de 65 para ambos os gêneros. Também reduziu a proposta de Temer de um mínimo de contribuição obrigatória de 25 anos para 15.

Mas 15 anos de contribuição não são os 15 anos de comprovação de trabalho, como funciona hoje. Pequenos produtores familiares, coletoras de babaçu, pescadores artesanais, entre outros, terão que pagar individualmente 180 parcelas mensais de um carnê com uma contribuição que, por enquanto, estima-se ser igual ao do microempresarial individual (5% do salário mínimo). Hoje, eles recolhem 2,1% de imposto no momento da venda de sua produção – que pode ser anual, por conta da safra. Ou seja, há quem também não conseguirá se aposentar porque não poderá pagar o carnê.

Ouvindo especialistas sobre a Reforma da Previdência, este blog traz duas sugestões para ajudar a Michel Temer e sua base de apoio no Congresso Nacional a alinhar seu discurso à prática e garantir que as mudanças nas aposentadorias não afetem os trabalhadores mais pobres do campo e da cidade:

Proposta 1: Mínimo de 15 anos de contribuição para pensões de até dois salários mínimos

O Congresso Nacional deveria manter a necessidade de um mínimo de 15 anos de contribuições mensais para os trabalhadores que têm direito a pensões de até dois salários mínimos. Ou uma contribuição mínima de 18 anos desde que os períodos de recebimento de seguro-desemprego sejam contados mesmo sem contribuição. Isso vai beneficiar os mais pobres, ou seja operários da construção civil, trabalhadores da economia informal que contribuem por conta própria e cortadores de cana assalariados, por exemplo.

Como os ministros do Supremo Tribunal Federal já votaram de forma contrária ao entendimento de que um aposentado volte a contribuir para pleitear um aumento em seu rendimento, isso afastaria os trabalhadores da classe média que seguiriam contribuindo para ter uma pensão maior.

Proposta 2: Mínimo de 15 anos de comprovação de atividade para aposentadorias rurais especiais

Manter as idades atuais (60 anos para homens e 55 para mulheres) para a aposentadoria de trabalhadores rurais da economia familiar, com 15 anos de comprovação de atividade, como é hoje, e não com 15 anos de contribuição – como quer o relator.

Para melhorar a conta neste setor, o governo deveria aprimorar o processo de arrecadação através do Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIC) para a área rural. Isso permitiria identificar quem são os segurados na área rural e demandar que eles informem sistematicamente os dados de venda de seus produtos, quando elas acontecerem. Dessa forma, evita-se fraude (como o recebimento do benefício por pessoas que não são do campo) e sonegação (na contribuição).

A aposentadoria especial rural, concedida no valor de apenas um salário mínimo, seguiria bem deficitária, claro, se considerada apenas a arrecadação da Previdência Social e não da Seguridade Social como um todo. Mas é um preço pequeno a pagar diante da possibilidade de evitar mais êxodo rural e mais inchaço das grandes cidades e garantir soberania alimentar – uma vez que a agricultura familiar fornece boa parte dos alimentos que consumimos. Ao mesmo tempo, essa aposentadoria era o maior programa brasileiro de distribuição de renda até a chegada do Bolsa Família.

Para amenizar a conta, poderíamos reestabelecer a taxação dos dividendos recebidos de empresas por pessoas físicas e uma mudança no imposto de renda, isentando os pobres e a maior parte da classe média e cobrando mais dos que mais têm, com alíquotas de até 40%.

Até porque os mais ricos do país, ao contrário do que afirmam alguns parlamentares, nunca precisarão jogar Sudoku ou tomar chuva na fila do INSS porque contarão com rendimentos obtidos sobre seu capital acumulado ou sua herança.

As duas sugestões resolvem a questão da Reforma da Previdência? Não, muito longe disso. Funcionam como provocações.

A reforma continua precisando de um debate mais aberto, franco e sem pressa para podermos redesenhar, de forma democrática, como será a política de aposentadoria que um Brasil mais velho deverá ter. Por exemplo, a atual proposta está isentando as categorias que conseguem fazer mais pressão sobre o governo, mas muitas outras sofrerão com ela e, portanto, deveriam ser chamadas para conversar.

Mas essas sugestões mostram que o argumento do governo (que a reforma não atinge os mais pobres), para fazer sentido, deveria vir com medidas com os pés na realidade. Se o governo afirmar que não há recursos para tanto, então seria melhor adotar um outro discurso. Um mais sincero.

A verdade é que muita gente, de todos os lados da questão, está querendo ganhar a disputa no grito, falando em nome dos mais pobres. Quando eles, na verdade, seguem bestializados com a percepção de um país que explora seu trabalho na juventude e os abandona na velhice.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.