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Leonardo Sakamoto

Por que muitos acham que bom jornalismo é lixo e que lixo é bom jornalismo?

Leonardo Sakamoto

03/06/2017 11h42

Há dois tipos de reclamações estranhas que aparecem com frequência em caixas de comentários de reportagens bem apuradas e equilibradas que circulam pela rede. Uma é a falta de uma "conclusão". Não um arremate ou um fechamento, mas uma espécie de grand finale mostrando como os elementos apresentados no texto refutam ou defendem uma tese.

Outra é que a reportagem é "confusa", não por ser mal escrita ou editada, pois ela não é, mas por apresentar diversos pontos de vista sobre um mesmo tema e não abraçar apenas um deles. Nesse caso, a reclamação, não raro, vem sempre acompanhada de uma pergunta: "Tá, mas o que você defende?" ou, sua versão mais rasteira, "Texto isentão! Lixo!".

Isso pode ser lido de várias formas. Poderíamos cair em uma discussão acadêmica a respeito do desconhecimento dos gêneros jornalísticos ou da falta de treino para diferenciar um formato narrativo de um opinativo. Mesmo essa discussão não teria fim uma vez que o formato narrativo também contém doses cavalares de opinião, por exemplo. Mas essa discussão aponta para uma das soluções do problema (educação para a mídia e cultura política, como parte integrante do currículo escolar), não para o entendimento do problema em si.

Leitores que apresentam essas duas reclamações se acostumaram a encarar textos opinativos como o "formato padrão", dada a quantidade de sua frequência na rede. Não eram consumidores de reportagens ou notícias mais equilibradas antes e tiveram sua "alfabetização digital" com textos que circulavam pelas redes sociais. Muitos deles, aliás, no meio da violenta polarização política ocorrida de 2014 para cá.

Nesse sentido, para muita gente, uma reportagem longa e com múltiplos posicionamentos é apenas um "textaum" sem sentido. Não porque não conseguem chegar até o final, mas por estarem buscando munição para a guerra digital em que estão inseridos. Nela, um conteúdo só é útil em batalha se puder ser usado para atacar a posição do outro – uma vez que este o atacou antes. E antes dele, você. E por aí vai.

Tempos atrás, escrevi um reportagem que trazia denúncias tanto contra um novo governador que havia acabado de assumir certo Estado, e seu opositor – que acabara de deixar o posto. A matéria não se espalhou pela rede como outras semelhantes que havia feito. Um senador do Estado em questão contou a uma amiga jornalista que minha reportagem era correta nos fatos, mas tinha incorrido no erro fatal de ser plural.

Dessa forma, não seria usada como "munição" nem pelos apoiadores do governador, nem pelos do ex-governador. E, como não havia nenhuma terceira parte com poder suficiente para repercutir a denúncia, acabou ignorada pelos dois grupos maiores na Assembleia Legislativa e junto à opinião pública.

Claro que reportagens que trazem grandes furos envolvendo um caminhão de políticos de diversas espécies repercutem – e muito. Basta ver as delações feitas por donos de grandes empresas que envolvem de Deus ao Diabo – independentemente de quem seja seu Deus ou seu Diabo.

Não estou menosprezando textos opinativos, muito pelo contrário, utilizo esse formato diariamente neste espaço. Mas mesmo análises e opiniões, para terem qualidade, precisam estar ancoradas em fatos e informações comprovadas e checadas, ou seja, nos fundamentos da reportagem. O que se critica aqui é a incapacidade de perceber que nem todo texto precisa ter uma função de batalha.

Há muito lixo, estruturado com base em mentiras e boatos por páginas e sites anônimos que, por se apresentarem como munição à disposição, são considerados de maior qualidade do que material que mostra uma realidade mais complicada do que parece.

Precisamos, urgentemente, parar de olhar essas reclamações em caixas de comentários como coisa de maluco, de troll ou de perfil fake. Muita gente não está na rede para conhecer um mundo desconhecido de conhecimento, mas para se armar a fim de defender sua aldeia (e o sistema de crenças dela) diante do desconhecido.

E, portanto, o sentimento que apresenta com um texto complexo é o mesmo que vivencia diante da pluralidade da sociedade: Ao não ver sentido bélico naquilo, frustra-se.

Quando o leitor acredita que um bom texto é aquele que o prepara para a batalha (trazendo argumentos que apenas reforçam suas crenças) e o orienta como lutar (arrematando tudo com uma ordem a seguir), independentemente de ser baseado em fatos ou em mentiras, não há construção de conhecimento possível.

E o acesso à informação passa a ser um ato de doutrinação e não de liberdade.

RI 07/03/2012 – Aterro Jardim Gramacho, considerado o maior aterro da america latina. Foto Pedro Kirilos / Agencia O Globo

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.