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Leonardo Sakamoto

Por que torcidas do futebol e da política escondem sociopatas?

Leonardo Sakamoto

19/06/2017 12h22

Torcedor do Corinthians é atendido após ser espancado por torcedores do Coritiba. Foto: Geraldo Bubniak/AGB/Estadão Conteúdo

O torcedor do Corinthians Jhonatan da Silva foi espancado por rivais do Coritiba, na manhã de domingo (18). Felizmente, já recebeu alta do hospital. A polícia afirma ter prendido um homem que confessou ter participado do crime – em imagens de vídeo, ele aparece chutando a cabeça da vítima. Responderá por tentativa de homicídio. Outras cinco pessoas também acabaram feridas em brigas envolvendo as duas torcidas.

Por mais que entendamos os processos que levam à desumanização do adversário ou mesmo os mecanismos que fazem com que pessoas pacatas se tornem monstros descontrolados quando em bando, não consigo encontrar uma palavra melhor do que "idiota" para me referir a quem entra em uma briga por causa de um jogo de futebol. Porque, no fundo, não é o futebol o motivo da agressão. Há algo maior no fundo. O futebol é apenas o instrumento de descarga.

Poderíamos falar de nosso machismo, em que educamos meninos para se comportarem como monstrinhos. Ou da incapacidade de lidar com a falta de sentido ou de controle da própria vida, transferindo frustração do dia a dia para um ato de violência protegido pelo anonimato da manada. Ou ainda do isolamento digital, físico ou social que leva à desumanização e dificulta o reconhecimento da outra pessoa como detentor dos mesmos direitos.

Minha hipótese é de que o sujeito que usa da violência para espancar outros torcedores é incapaz de canalizar a energia para o que realmente afeta sua dignidade. Como filas em hospitais, aumentos na passagem de ônibus, um salário mínimo ridículo, a falta de locais de lazer, a educação insuficiente que seus filhos recebem em escolas públicas e privadas, as moradias precárias que desabam com o vento, patrões que passam a mão na sua bunda, empresas que só enxergam o lucro e passam por cima de tudo, reformas que tiram direitos dos trabalhadores da ativa e dos aposentados, políticos incompetentes e ladrões.

Pelo contrário, como bons cães de guarda de preconceitos, desconfio que são capazes de xingar quem tenta se insurgir contra a violência da desigualdade social e ocupar um imóvel rural ou urbano vazio, tornando-o sua moradia. São capazes de afirmar que reside em uma ocupação como essa a verdadeira violência e não aquela perpetrada por ele mesmo. Seja por não ter se conscientizado sobre quem ele é na sociedade, seja por ter sido sistematicamente alienado sobre tudo isso.

Prefere seguir "líderes" que propõem soluções fáceis e violentas para o vazio que ostentam no peito. Como as lideranças que prometem paz através da imposição do silêncio ao outro – seja esse outro o adversário que diz que seu time é o melhor, seja homossexuais, transexuais, mulheres, entre outros, que exigem ser tratados com os mesmos direitos. Temos visto isso por declarações de jogadores de futebol que dizem apoiar políticos violentos que prometem a imposição do silêncio se eleitos como presidentes.

É interessante como se dá a formação de matilhas pela identidade reativa a um outro grupo ao invés da percepção das características do seu próprio grupo. É assim com o antipetismo, que se une pelos crimes do outro lado. Ou seja, muita gente se une pelo ódio e não pela solidariedade. O problema é que a união pela negação é incapaz de criar um projeto próprio de país, mas apenas algo com sinal invertido.

Nesse contexto, há torcidas políticas que abandonam a razão muito antes que alguns torcedores de times de futebol. Pois apesar de muitos destes estarem envolvidos em atos de barbárie e selvageria, seus componentes ao sabem quando o seu time dá vexame, protestam contra os dirigentes, vaiam a própria esquadra, reconhecem jogadas de craque do adversário.

Mas não é assim que muita gente que se torna torcedora fanática na política, adotando ares de seita fundamentalista religiosa, dividindo o mundo entre o divino e o satânico. Tente criticar o governo Dilma Rousseff, por exemplo, a quem a santificou por ter sofrido o impeachment, esquecendo todos os seus "pecados" contra  população indígenas, ribeirinhas, quilombolas, trabalhadores rurais, sem contar ao meio ambiente e, consequentemente, às futuras gerações.

Há pessoas que parecem não aceitar serem questionadas. Talvez para afastar os medos e inseguranças sobre suas próprias crenças. Acredito que meu ponto de vista está correto. E defendo-o. Mas sei que isso não faz dele o único. Uma outra pessoa pode defender que a forma mais correta de acabar com a fome, a violência, as guerras, a injustiça seja por outro caminho.

Sei que é duro acreditar nisso neste momento de crise política, econômica e social. E, pior: com profissionais das redes sociais, de um lado e de outro, distribuindo granadas à população para que entre em uma guerra fratricida enquanto seus líderes interagem pacificamente entre si. Por isso, seria bom se buscássemos a tolerância no diálogo, mesmo que firme e duro, e nos perguntemos se achamos que estamos certos a todo o momento, uma vez que nossa natureza não de certezas e sim de dúvidas e falhas que só poderão ser melhor percebidas no tempo histórico.

Desde o final das eleições gerais de 2014, fui assediado violentamente na rua. Recebi ameaças de morte, algumas delas apresentadas ao Ministério Público e que ainda estão sendo investigadas pela polícia. Fui cuspido e agredido fisicamente. Houve campanhas que construíram e divulgaram mentiras contra mim, algumas delas pagas por grandes empresas, como ficou comprovado. Falo, portanto, por experiência própria.

Durante o período de maior tensão do impeachment, ouvimos relatos de pessoas que foram assediadas, agredidas e ameaçadas de morte na rua por estarem usando uma cor "ideologicamente inaceitável", carregarem livros "proibidos", usarem adesivos que "ostentavam uma opinião errada" ou não compactuando com ofensas a ideias e pessoas, terem tido a "ousadia" de, educadamente, manifestarem-se sobre isso.

Esse processo continua, com pessoas dos mais diferentes matizes políticos e ideológicos sendo assediadas em locais públicos. Uma fúria incontida de torcedores ideológicos que resolvem fazer "justiça" por conta própria, com seus linchamentos verbais.

Na minha opinião, essas pessoas podem até se autointitular de direita, de esquerda, progressistas ou conservadores, "mortadelas" ou "coxinhas", manifestantes pró ou anti-governo, pessoas defendendo a justiça social ou contra a corrupção. Ou mesmo corintianos, coritibanos, palmeirenses, sãopaulinos, flamenguistas, gremistas. Mas, em verdade, muitos não se importam com o campo ideológico em que estão ou com o time para o qual torcem. Isso é apenas o canal escolhido para extravasar sua violência.

Claro que, em última instância, há também aqueles com sérios distúrbios psicológicos ou, mesmo, sociopatas que se escondem em grupos políticos ou torcidas de futebol para praticar seus delitos, sem senso moral ou responsabilidade, sem sentimento de culpa ou reflexão sobre as consequências. Estou excluindo desta discussão  aqueles que são pagos para tocar o terror e agredir fisicamente um grupo adversário. Esses, independentemente de sua coloração, entram na categoria de mercenários e deveriam ser julgados como tais.

Sabemos, é claro, que temos um déficit de formação para a cultura política do debate e para a convivência com a diferença e que, infelizmente, não somos educados, desde cedo, para saber ouvir, falar, respeitar e, a partir daí, construir consensos ou saber lidar com o dissenso. Não somos educados para a tolerância e a noção de limites.

O mesmo se repete, sem dúvida, com a subversão da fé. E determinados líderes e seguidores que transformam suas religiões em legiões de exércitos para enfrentar o mundo.

Por fim, parte dos brasileiros foi ensinado que a violência é o principal instrumento de resolução de conflitos. Por falta ou fraqueza de instituições públicas ou sociais confiáveis que assumam esse papel, por achar que alguns possuem mais direitos que outros por conta de dinheiro ou de músculos, por alguma patologia que nunca consegui entender muito bem.

O Brasil não é um país que respeita a dignidade do outro e não há perspectivas para que isso passe a acontecer pois, acima de tudo, falta entendimento sobre direitos humanos e, consequentemente, apoio, da própria população. Que, bem treinada pelos programas do tipo "espreme que sai sangue" na TV, acha isso uma "coisa de proteger bandido" e esquece que a própria liberdade de professar uma crença ou de não ser agredido gratuitamente por dizer o que pensa diz respeito a direitos humanos.

Gostamos de viver as tradições por aqui. Como o direito de deixar claro quem manda e quem obedece. Se necessário, através da porrada – que é o que realmente nos une e nos faz brasileiros.

São uma minoria de violentos. Na política, no futebol, na religião. E que, portanto, deveria ser tratada ou expelida por seus companheiros políticos, suas torcidas, os outros fiéis. O problema é que o resto da sociedade, por cumplicidade ou indiferença, segue no papel de refém e espectadora de um show de horrores que parece não ter fim.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.