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Leonardo Sakamoto

São Paulo: Importante é acelerar. Mortos e feridos são apenas um detalhe

Leonardo Sakamoto

20/06/2017 11h12

O número de mortes em acidentes na capital paulista aumentou 12,3%, em maio, na comparação com o mesmo mês de 2016. Ao todo, foram 91 mortes, sendo os pedestres as maiores vítimas. Os dados são do banco de dados do Movimento Paulista de Segurança no Trânsito, ligado ao governo paulista.

Dados de outra fonte – o batalhão de trânsito da Polícia Militar – já haviam apontado que as vias marginais dos rios Tietê e Pinheiros registraram aumento no número de acidentes por quatro meses seguidos desde que a gestão João Doria elevou as velocidades máximas. Foram 144 ocorrências, em maio deste ano, contra 115 no mesmo período do ano passado, o que representa uma alta de 25%.

Um dia, quando arqueólogos ETs forem estudar nossa civilização milhares de anos depois de termos sido extintos por conta de alguma burrada que certamente cometeremos, eles vão ter uma dificuldade gigantesca de entender como uma parcela considerável dos habitantes deste planeta considerava máquinas desenhadas para transportar de um lugar para outro como uma extensão de seus próprios corpos.

Perguntarão como muitos membros dessa estranha civilização dedicavam mais tempo à manutenção desses equipamentos do que à sua própria prole. Ficarão de queixo caído ao entenderem que, quanto mais aceleravam em velocidade, muitos desses seres esperavam esquecer a tristeza de empregos ruins, de casamentos que deram errado, da falta de perspectivas para a vida. Pelo menos, era o que outras maquininhas chamadas TVs prometiam a eles

Ficarão intrigados, especialmente, ao perceberem que muitos homens não usavam carros como meios de locomoção mas, sim, como projeções ou prolongamentos de seus membros sexuais. Por compensação. Por frustração.

Os ETs certamente ficarão decepcionados quando entenderem que havia um sentimento coletivo de que a dignidade das pessoas era menos importante do que a liberdade dessas máquinas.

Daí, os ETs cancelarão imediatamente a pesquisa sobre as ruínas de nossa civilização, ordenando a destruição completa do que restou do planeta. E seguirão para Marte, porque a areia amarela, as rochas e os vestígios da plantação de batatas de Matt Damon fazem mais sentido.

O número de atropelamentos e acidentes fatais caiu consideravelmente com a redução da velocidade na gestão Haddad. Ignorar isso por ódio ao PT é tão triste quando ignorar que o PSDB começou o combate sistemático ao trabalho escravo no Brasil, em 1995, durante a gestão Fernando Henrique. E não são poucos os especialistas em trânsito que avisaram que o número dos acidentes aumentaria quando o prefeito João Doria cumprisse sua promessa de campanha e aumentasse a velocidade nas vias marginais – como veio a fazer.

Doria é uma pessoa inteligente e um excelente comunicador. Sabe que a grande maioria da população de São Paulo prefere varrer rapidamente a Cracolândia da região da Luz para longe dos olhos do que resolver lentamente um grave problema de saúde pública. E é o que está fazendo junto com o governador Geraldo Alckmin. Da mesma forma, sabe que seus eleitores preferem consumir a felicidade enlatada de acelerar um automóvel e chegar mais rápido a algum lugar do que frear o impulso coletivo de forma a garantir que todos cheguem bem, como muitas cidades ao redor do mundo têm feito.

A diferença entre um político e um gestor é que o segundo preenche expectativas e desejos de consumidores. E o primeiro deve ser guiado pela vontade da maioria, mas respeitando a dignidade e a qualidade de vida do coletivo, inclusive das minorias.

É um debate difícil. Por aqui, não importam dados que mostrem que o número de atropelamentos e acidentes fatais caiu consideravelmente com a redução das velocidade nas pistas das marginais. No município de São Paulo, o ódio a qualquer política que restrinja a liberdade desfrutada pelo automóvel é maior que a razão. Não só moradores da cidade como alguns de seus administradores preferem apresentar "fatos alternativos" (termo usado por Kellyanne Conway, conselheira do presidente dos Estados Unidos Donald Trump, para justificar uma mentira contada por sua administração), com "dados" que provam o contrário.

O importante é acelerar. Mesmo que mortos sejam deixados pelo caminho.

Parcerias com o setor privado estão sendo estabelecidas em um estalar de dedos, sem sabermos quais os interesses envolvidos por trás das "doações descompromissadas" – no caso de medicamentos, por exemplo, a imprensa mostrou que as "doações" custaram caro ao poder público em isenção de impostos. Gostaria de retomar, portanto, uma sugestão que já fiz aqui: que algum fabricante de TVs instale um placar eletrônico, supermoderno, de LED, a fim de mostrar o número de mortos e feridos no trânsito de São Paulo. Que seria atualizado em tempo real.

Seria um outro presente à altura de uma capital que corre cada vez mais. E, na pressa, esquece o porquê.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.