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Leonardo Sakamoto

Salsicha da Reforma Trabalhista: Se soubessem como foi feita, ninguém comia

Leonardo Sakamoto

29/06/2017 17h15

Há algumas situações que, apesar de contarem com uma explicação científica, sociológica ou psicológica razoável, tenho dificuldade de assimilar.

Uma delas é quando um trabalhador ou trabalhadora – que sofre por conta de patrões exploradores, chefes violentos, políticos sacanas e por um sistema financeiro que arranca-lhe o couro – ataca violentamente toda e qualquer tentativa de outras pessoas lutarem contra a exploração.

Compreendo perfeitamente quando patrões e alguns de seus representantes na política e na economia, defendem abertamente que a Greve Geral do dia 28 de abril foi um fiasco. Eles sabem que o país não aguenta um baque econômico daquela proporção toda a semana, mas precisam relativizar o tamanho da mobilização a fim de evitar que a pauta cresça em importância junto à sociedade e, portanto, alcance seus objetivos. Neste caso específico, evitar que as Reformas Trabalhista e, principalmente, a da Previdência sejam aprovadas a toque de caixa e sem o devido debate com a sociedade.

É, portanto, uma questão de defesa da narrativa usada por esses grupos e de sua própria sobrevivência.

Mas o que dizer dos trabalhadores que, apesar de estarem na mesma condição que os demais, atuam como cães de guarda do capital alheio, tentando convencer outras pessoas que a Greve Geral foi um fracasso e que todas as manifestações e paralisações, como aquelas agendadas para esta sexta (30), são inúteis?

O que leva um trabalhador a lutar para que as pessoas achem que as imagens, publicadas pela imprensa, mostrando ruas de comércio totalmente fechadas e passeatas reunindo dezenas de milhares em várias cidades do país, são falsas? O que, além do desconhecimento histórico, faz com que pessoas chamem outras que resolveram cruzar os braços em busca de uma vida melhor de "vagabundas"?

Muitos pensam que "se me estrepei a vida inteira, todo mundo tem que se estrepar também". Isso representa o melhor da filosofia "Para o Buraco, Eu Não Vou Sozinho" (muito conhecida desde que o segundo hominídeo tentou derrubar o primeiro hominídeo após este ter se erguido e andado com duas penas), mas que vem se aprofundando em sociedade individualistas.

E, é claro, temos variações: "Se tive que trabalhar desde cedo e, hoje, sou uma pessoa com bom caráter, também acho que criança deveria trabalhar para não cair na vagabundagem" ou "Trabalhei a vida inteira e nunca tive uma casa própria. Agora, vem um bando de desocupado e invade um terreno para chamar de seu? A polícia tem que descer o cacete nesse povo para aprender que patrimônio só surge do suor e do trabalho".

Nada como uma sociedade doutrinada para servir de cão de guarda.

Prefiro este formato: "Se não tenho coragem de lutar pelo que acredito ser uma vida digna, preferindo reclamar silenciosamente sobre a minha infelicidade, quero que o mundo faça o mesmo". Quem pensa assim, não entende que moradia, alimentação, educação, saúde são direitos fundamentais. E, nessa hora, brada: "e esses vagabundos pagam os impostos para poder ter direitos fundamentais?"

Esses mesmos repetem bobagens como "a pessoa é pobre porque não estudou ou trabalhou". Pois acham que basta trabalhar e estudar para ter uma boa vida e que um emprego decente e uma educação de qualidade é alcançável a todos e todas desde o berço. E que todas as pessoas ricas e de posses conquistaram o que têm de forma honesta. Acham que todas as leis foram criadas para garantir Justiça e que só temos um problema de aplicação.

Boa parte das pessoas não se pergunta quem fez as leis, o porquê de terem sido feitas e quais os interesses por trás delas. A verdade é que se as pessoas soubessem como certas regras e normas que seguem no cotidiano foram produzidas, haveria um motim. Aquela velha história da salsicha. Sendo que a produção de salsicha é muito melhor e mais saudável do que de certas leis.

Um senador da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal, que pediu para não ser identificado, comentou com este blog que uma boa parte de seus colegas, incluindo base aliada e oposição, não fazem ideia do que está no texto da Reforma Trabalhista – aprovada na comissão nesta quarta (28).

Muitos repetem de forma superficial o que leem, veem e escutam na imprensa ou através de representantes de associações empresariais, empresas, sindicatos ou movimentos. Não sabem dizer se o projeto traz salvaguardar eficientes para evitar o desrespeito aos direitos de trabalhadores terceirizados, nem se há ou não elementos para evitar a "pejotização". Ou mesmo quais são as vantagens e desvantagens de flexibilizar a jornada e os períodos de alimentação e descanso. Não duvido que há quem considere que o termo "pagamento de horas in itinere" é um xingamento.

O problema é que essas 81 pessoas votarão a Reforma Trabalhista no plenário na semana que vem e decidirão sobre a vida de todos nós pelos próximos anos.

A partir de meia dúzia de propostas encaminhadas pelo Palácio do Planalto, a Reforma Trabalhista ganhou corpo na Câmara dos Deputados pelas mãos do relator Rogério Marinho (PSDB-RN). Grosso modo, o texto final foi inspirado por demandas apresentadas por confederações empresariais e por posições derrotadas em julgamentos no Tribunal Superior do Trabalho, posições que significaram perdas a empresários e ganhos a trabalhadores.

A Câmara e o Senado não foram palco de um necessário debate sobre as dezenas de propostas de alteração na legislação que regulamenta o mercado de trabalho. O que está em jogo para o governo Temer e a cúpula de sua base aliada no Congresso não é a qualidade de vida dos trabalhadores, mas a continuidade do apoio do poder econômico ao governo – e, portanto, a perspectiva de continuarem no poder e não serem pegos pela Lava Jato.

A maioria dos cães de guarda do capital alheio, contudo, acha que a Reforma Trabalhista (desbalanceada a favor dos grandes empresários) se resume à retirada da contribuição sindical obrigatória. E, cegados pela raiva contra os sindicatos, ignoram as dezenas de outras mudanças.

Particularmente, sou a favor do fim da obrigatoriedade de que trabalhadores paguem um dia de trabalho ao ano para o sindicato que os representam. E vou além: também sou a favor do fim da unicidade sindical, evitando que apenas um sindicato represente uma categoria por região. Afinal, o trabalhador tem o direito de escolher quem o represente. Chega de apoiar sindicatos de fachada montados para que alguns ganhem dinheiro e patrões se divirtam. Que se fortaleçam os sindicatos de verdade. Isso, contudo, é um grande temor de parte do empresariado que quer sindicalistas no cabresto.

Quando vejo milhares de pessoas ocuparem um terreno ocioso, não consigo deixar de ficar feliz porque aquela terra, finalmente, poderá ter uma função social. Com exceção do dono do terreno, de outros donos de terrenos ociosos e de seus representantes políticos, legais e econômicos, ou das pessoas que pertençam às mesmas classes sociais desse pessoal já citado ou é por eles pagos para defender seus interesses, é difícil entender a razão de ter gente que sai atacando uma ocupação de sem-teto como essa, fazendo o papel de soldado não-remunerado.

Valores ensinados cuidadosamente e ao longo do tempo vão colando em nossos ossos e nos transformando em guerreiros da causa alheia. Não ganhamos nada com isso, pelo contrário, perdemos. Como cidadãos, como seres humanos. Mas preferimos defender o não-uso bizarro de uma propriedade privada do que a dignidade do ser humano. Bem como preferimos ridicularizar quem cruza os braços em nome da melhoria de sua qualidade de vida, mesmo que sejamos nós também beneficiados por esse ato.

Direitos que nós temos hoje, como aposentadoria, férias, 13o salário, limite de jornada de trabalho, descanso aos finais de semana, piso de remuneração, proibição do trabalho infantil, licença maternidade não foram concessões vindas do céu. Mas custaram o suor e o sangue de muita gente através de diálogos e debates, demandas e reivindicações, paralisações e greves, não só no Brasil, mas em todo o mundo.

É função de empregadores e políticos fazerem parecer que foram eles que, generosamente, ofereceram direitos. E função da História contada pelos vencedores registrar isso como fato inquestionável, retirando do povo, a massa muitas vezes amorfa e sem rosto, o registro dessas vitórias, como já disse aqui.

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O povo, devidamente treinado por instituições como escolas, igrejas, trabalho, garante o seu próprio controle e o monitoramento no dia a dia.

Quem sai da linha do que é visto como o padrão e o normal, leva na cabeça.

Quem resolve se insurgir contra injustiças e foge do comportamento aceitável vira um pária.

Sem essa vigilância invisível feita pelos próprios controlados, é impossível um grupo se manter no poder por tanto tempo e de forma aparentemente pacífica como ocorre por aqui.

O melhor gado é aquele que dispensa a cerca.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.