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Leonardo Sakamoto

Ataques à vida pessoal de políticos é sintoma de que a maionese desandou

Leonardo Sakamoto

15/07/2017 20h04

Coxinhas, mortadelas e outras iguarias vão sofrer se a grande maionese chamada Brasil desandar

O ex-ministro da Fazenda Guido Mantega estava acompanhando a esposa doente no hospital e foi agredido. O ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha foi molestado no aeroporto. Pessoas foram ao velório do ex-presidente da Petrobras José Eduardo Dutra para xingar os presentes. Quando Marisa Letícia, esposa do ex-presidente Lula, faleceu, também foram à porta do hospital dizer que ela teve o que mereceu. Picharam a casa do prefeito João Doria por conta de sua política de privatizações. A deputada estadual Maria Victoria, filha do ministro da Saúde, Ricardo Barros, e seus convidados foram alvo de ovos após o seu casamento. Gritaram a Geraldo Alckmin, logo após a morte de seu filho em um acidente de helicóptero, que isso foi um castigo divino.

Entendo a raiva e a indignação contra os políticos. A maioria deles nos trata como otários. Mas determinadas ações apenas nos afastam do diálogo necessário para resolver a situação, jogando o país mais próximo do colo de soluções autoritárias.

Um indivíduo ou um grupo tem todo o direito de protestar contra políticos baseado em seu entendimento do que é certo, do que é errado e do que é inaceitável. Mas, principalmente, observando se esses políticos seguem a lei que juraram obedecer e se adotam um comportamento ético, democrático e republicano. A arena para tanto é o espaço público, online e offline.

O problema é que, acostumados ao ambiente de guerra campal das redes sociais, muitos transbordam a mesma violência vinculada à falta de empatia e à certeza do anonimato para o ambiente offline. Adota-se uma percepção, a meu ver equivocada, do que seja o espaço público: todos os lugares, exceto o interior da casa da pessoa alvo do ataque. Portanto, qualquer protesto em qualquer lugar é possível contra qualquer político. Mesmo que se trate de ambiente ou situação de caráter pessoal, com direito à privacidade.

Parte dos políticos que ataca diariamente as instituições democráticas tem grande responsabilidade nesse processo. Afinal, o discurso de ódio que deles parte, muitas vezes em vídeos nas redes sociais, se ramifica até chegar ao cidadão comum – que copia seu líder.

Em setembro do ano passado, uma funcionária do Instituto Lula foi vítima de agressão de conteúdo misógino e sexual, na porta de um restaurante perto do seu local do trabalho, no bairro do Ipiranga, em São Paulo. Por que o homem retirou o pênis da calça e disse que ela deveria fazer sexo oral nele quando soube que ela trabalhava para o ex-presidente? (para além de morarmos em um país onde a violência de gênero é a regra, claro). Porque certamente é a mesma coisa que o seu político de estimação faria.

Trato disso aqui há muitos anos, tendo publicado um livro sobre o que aprendi com tudo isso. Já fui cuspido, agredido fisicamente, ameaçado de morte. Na rua, em aeroporto, museu, bar, restaurante, supermercado e até casa lotérica, seja por não gostarem do que defendo em meus textos, seja pela minha atuação no combate ao trabalho escravo. Segundo muita gente, mereço isso. Afinal de contas, o meu ponto de vista é um mal. E o mal deve ser extirpado.

Ao criticar agressões e linchamentos públicos de políticos "culpados" ou "inocentes" não tenho "bandido de estimação", muito menos quero "criminalizar quem protesta". Pelo contrário, o Brasil estaria melhor se ocupássemos mais as ruas em nome da dignidade humana. Mas me preocupo com o pacto que os membros da sociedade fizeram entre si para poderem conviver (minimamente) em harmonia. Em algum momento da história humana, abrimos mão de resolver as coisas por conta própria para impedir que nos devoremos. E colocamos a política no centro desse processo, para permitir o diálogo, mesmo que duro e de enfrentamento, mas na arena pública. O sistema que criamos para isso não é perfeito, longe disso, mas é o que tem para hoje.

Defendo as manifestações contra políticos. Todas têm o direito de acontecer, realizadas dentro dos limites dos próprios direitos humanos. Pois imagine se todos, com seus diferentes pontos de vista e ideologias, resolvessem ir à desforra por conta própria.

Tudo isso tem especial significado quando Jair Bolsonaro (PSC-RJ), e seu discurso que promete colocar ordem na bagunça passando por cima do que for necessário, pode estar no segundo turno das eleições presidenciais de 2018 – de acordo com pesquisas eleitorais,

Definitivamente o país que pode se erguer do assassinato do diálogo não será algo bonito de se ver.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.