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Leonardo Sakamoto

Incapaz de garantir vida digna a seu povo, Rio declara "guerra" contra ele

Leonardo Sakamoto

28/07/2017 18h51

Foto: Cléber Júnior/Extra/Agência O Globo

Por ordem do governo federal, as Forças Armadas já estão no Rio de Janeiro para ajudar na segurança pública. De acordo com o ministro da Defesa Raul Jungmann, o efetivo de 8500 militares não será usado em patrulhamento de rotina, mas no apoio a ações da força policial contra o crime organizado.

A crise econômica pela qual passa o Estado aprofundou o caos na segurança pública. Com isso, aumentou o número de mortes decorrentes da disputa de territórios por traficantes, mas também aquelas oriundas de ações policiais. O Rio está com os salários atrasados de seus funcionários públicos, o que incluem professores, médicos e agentes de segurança, muitos dos quais têm que fazer bicos para sobreviver. Desde o início do ano, mais de 90 policiais foram assassinados por lá – a maior parte deles fora do horário de serviço. Aliás, policiais honestos são vítimas preferenciais dessa situação, em detrimento aos que não seguem as regras e os que criam milícias.

Mas o uso das Forças Armadas em um contexto como esse deve ser visto com muita cautela. Soldados são treinados para matar e não para tomar decisões que levem em conta a situação do local em que estão em um determinado momento. Esse é, inclusive, um dos principais pontos de discussão sobre a necessidade de desmilitarização da formação policial. Pois, mais do que seguir ordens de um comando que vê números, o objetivo do agente de segurança é  proteger a vida e a dignidade humanas acima de qualquer outra coisa.

O Exército acabou se tornando uma espécie de coringa a ser usado quando a situação sai do controle. Neste caso específico, não deve haver ocupação de comunidades. O que se tornou corriqueiro em eventos internacionais, para garantir ao visitante do Rio uma segurança da qual o cidadão não desfruta em sua vida cotidiana.

É claro que o Rio vive uma situação complicada, que precisa ser enfrentada. Mas é fascinante como o discurso do medo de determinada classe social mais alta cria uma sensação de insegurança generalizada quando essa mesma classe não é a principal afetada pela violência. Na grande maioria das vezes, os combates entre traficantes e policiais ocorrem na periferia. Considerando todos os grupos envolvidos, quem mata e morre tende a ser negro e pobre.

O medo dos mais ricos torna-se o medo dos mais pobres – por mais que os mais pobres tenham um milhão de razões a mais para sentir medo e não apenas aquela razão que se transformou em mantra. Medo dos mais ricos, inclusive.

Parte da sociedade sente-se mais segura com o Estado agindo "em guerra" contra a violência – como se isso não fosse, em si, um contrassenso. Acreditam em soluções que não funcionam, como cercas elétricas, muros altos e seguranças particulares. Apaixonadas por um autoengano, creem que a questão da violência urbana pode ser resolvida com mais pessoas fardadas na rua.

É importante aumentar o efetivo, ainda mais em momentos de crise, mas não só. Caso contrário, quando passar a fase aguda da crise de segurança, conviveremos bovinamente com a fase crônica. Uma resposta consistente passa por outro tipo de presença ostensiva do Estado, com mudanças estruturais que garantam qualidade de vida e cidadania através de serviços básicos como educação, saúde e lazer nesses locais. Ou mesmo uma perspectiva de futuro à juventude que, hoje, acaba empurrada para o tráfico.

Em meio às trevas de uma crise que se tornou institucional, cresce a força de discursos autoritários e violentos que prometem resolver tudo isso que está aí com mão de ferro, botando ordem na base da porrada. Contra isso, faz-se necessário mostrar que as causas da sensação de falta de segurança vão além de problemas com a repressão da violência, mas deriva também do fracasso em proporcionar dignidade.

Vai dar trabalho, vai mexer com muita estrutura montada para que tudo fique como está, vai fazer muita gente perder dinheiro e, ao final, se der certo, vai colocar o morro em pé de igualdade com a orla. Afinal, já passou da hora de não termos mais medo de deixar de sentir medo.

 

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.