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Leonardo Sakamoto

Gilmar Mendes age como hater de rede social para ironizar o Estado laico

Leonardo Sakamoto

21/09/2017 20h49

Foto: Marlene Bergamo/Folhapress

O Supremo Tribunal Federal está analisando se o ensino religioso pode ser ou não confessional nas escolas públicas, ou seja: ele deve contemplar a história e a filosofia de diferentes religiões ou pode adotar uma crença em particular? O Ministério Público Federal defende que essa disciplina, de matrícula já opcional, não tome partido de nenhuma religião, mas há o risco das coisas não serem bem assim daqui para frente.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação proíbe a doutrinação de uma religião, mas um acordo entre o Brasil e o Vaticano proíbe discriminação de crença. O STF analisa essa questão sob a Constituição Federal, o que pode levar à crença a ser ensinada em escolas públicas de ensino fundamental.

A discussão foi interrompida quando estava 5 a 3 a favor de que as aulas possam seguir os ensinamentos de uma religião específica. A votação deve ser retomada na próxima semana. O que chamou atenção, especialmente, foi a participação de Gilmar Mendes. Ao votar a favor do ensino confessional, o ministro ironizou o Estado laico de uma forma bem tosca.

"Aqui me ocorre uma dúvida interessante: será que precisaremos em algum momento chegar ao ponto de discutir a retirada da estátua do Cristo Redentor do Morro do Corcovado, por simbolizar a influência cristã em nosso país?"

E foi além: "Ou a extinção do feriado nacional da padroeira Nossa Senhora Aparecida? A alteração do nome dos Estados? São Paulo passaria a se chamar Paulo? Santa Catarina passaria a se chamar Catarina? Espírito Santo poderia se pensar em Espírito de Porco ou qualquer outra coisa".

Segundo ele, símbolos cristãos do Brasil poderão ser extintos em consequência da discussão dessa ação no STF.

Esse tipo de argumento é sistematicamente usado em conversas de botequim ou por enxames de haters na internet quando o assunto é o Estado laico. Estranho, portanto, ouvir isso de alguém que tem assento no Supremo Tribunal Federal e, por conhecer História e Filosofia, não deveria usar argumentos pobres como esses nem por brincadeira. Ou não.

De tanto assistir às sessões do Supremo Tribunal Federal, creio que seria capaz de fazer uma maquete do plenário de memória. E um dos elementos que mais chama a atenção é um impávido crucifixo que ornamenta o plenário do Supremo, lembrando que já passamos da hora de retirar adornos e referência religiosas de edifícios públicos, como o STF e o Congresso Nacional.

A França retirou os símbolos religiosos de sedes de governos, tribunais e escolas públicas no final do século 19. Nossa primeira Constituição republicana já contemplava a separação entre Estado e Igreja, mas estamos mais de 120 anos atrasados em cumprir a promessas dos legisladores de então.

Não é porque o país tem uma maioria de católicos que outras religiões cristãs que não concordam com um símbolo do Cristo crucificado, mas também espíritas, judeus, budistas, muçulmanos, ateus, religiões de matriz africana, enfim, minorias, precisem aceitar essa imagem em um espaço de Estado.

Isso não é uma questão artística, estética ou um registro histórico. Não é uma estátua ornando um local público. É uma re-par-ti-ção pública! As denominações cristãs são parte interessada em polêmicas judiciais, como pesquisas com célula-tronco ao direito ou a extensão do direito ao aborto. Se esses elementos estão presentes nos locais onde são tomadas as decisões, como afirmar que elas serão isentas? Talvez a maior prova disso é o próprio voto de Gilmar Mendes, mesmo que ele não perceba isso.

O Estado deve garantir que todas as religiões tenham liberdade para exercer seus cultos, tenham seus templos, igrejas e terreiros e ostentem seus símbolos. Mas não pode se envolver, positiva ou negativamente, para promover nenhuma delas.

O Ministério Público do Piauí pediu, em 2009, a retirada de símbolos religiosos dos prédios públicos. O presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro mandou recolher os crucifixos que adornavam o prédio e converteu a capela católica em local de culto ecumênico. Algumas dessas ações têm vida curta, outra nem são atendidas, mas o que importa é que percebe-se um processo em defesa de um Estado que proteja e acolha todas as religiões, mas não seja atrelado a nenhuma delas.

A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão de São Paulo pediu, em 2012, que a Justiça Federal determinasse que as novas notas de reais a serem impressas viessem sem a expressão "Deus seja louvado". Não foi atendida, infelizmente.

De acordo com o Ministério Público Federal, o Banco Central (responsável pelo conteúdo das notas) informou que o fundamento legal para a inserção da expressão "Deus seja louvado" nas cédulas é o preâmbulo da Constituição, que afirma que ela foi promulgada "sob a proteção de Deus". Depois, a frase teria permanecido por uma questão de tradição. Na época, o procurador regional dos Direitos do Cidadão, Jefferson Aparecido Dias, lembrou que "quando o Estado ostenta um símbolo religioso ou adota uma expressão verbal em sua moeda, declara sua predileção pela religião que o símbolo ou a frase representam, o que resulta na discriminação das demais religiões professadas no Brasil".

Se o Supremo não quiser subtrair, então some. Coloque uma Estrela de Davi, uma Crescente com uma Estrela, um OM em sânscrito, uma Roda do Dharma, Yin-Yang, um Khanda e algumas reflexões ateístas. Mas tendo em vista todas as manifestações religiosas e crenças do brasileiro, mesmo aquele paredão será insuficiente para registrar tudo. Caso não possamos colocar todos, não coloquemos ninguém.

Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Quanto à ironia de Gilmar Mendes sobre o Cristo Redentor: Em janeiro de 2010, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou uma nota em que rejeitou "a criação de 'mecanismos para impedir a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União', pois considera que tal medida intolerante pretende ignorar nossas raízes históricas". Na época, auto-intitulados representantes de Deus, afirmaram que se movimentos quisessem retirar símbolos religiosos, então deveriam começar pelo Cristo Redentor.

Particularmente, podem demolir a estátua que não dou a mínima (e, com essa frase iconoclasta, lacro a excomunhão deste que já foi até coroinha). Desde que coloquem um mirante por lá, tá ótimo. Mas sei que a sociedade, que tem apreço por ela, não deixaria meia dúzia de "iluminados" sacerdotes tomar tal medida uma vez que o monumento pertence, na prática, à cidade do Rio e não à Cúria. E, o mais importante, difícil imaginar que uma instituição milenar (a Igreja Católica) que possui a propaganda de ideias como um de seus alicerces, vá além das bravatas sobre o maior e mais alto "anúncio religioso" a céu aberto do mundo.

Por fim, como já disse aqui várias vezes, adoro quando alguém apela para as "raízes históricas" para discutir algo. A escravidão, sociedade patriarcal, a desigualdade social, a exploração irracional dos recursos naturais, a submissão da mulher como mera reprodutora e objeto sexual, o patrimonialismo e o elitismo, caçar índios no mato, manter negros como carne de segunda – tudo isso está em nossas raízes histórias. E queimar pessoas por intolerância de pensamento está nas raízes históricas de muita gente.

Quando o ser humano consegue caminhar a ponto de ver no horizonte a possibilidade de se livrar das amarras de suas "raízes históricas", obtendo a liberdade para acreditar ou não, fazer ou não fazer, ser o que quiser ser, respeitar o outro e ser respeitado, há membros de instituições importantes que decepcionam. E pressionam para que as coisas voltem a ser como eram ou não mudem nada, em detrimento à dignidade humana.

Liberdade, sim. Desde que nós escolhamos a melhor opção para você.

Uma escola que fale sobre as principais religiões do Brasil e do mundo, bem como sobre a filosofia por trás delas, tem o poder de reduzir o medo dos futuros cidadãos quanto ao desconhecido. E, portanto, aumentar a empatia e diminuir o ódio e a intolerância religiosas. Fieis de religiões de matriz africana têm sofrido cada vez mais violência pelas mãos de quem diz fazer isso em nome do evangelho, mas desconhece a ideia de amor e compreensão que está no centro da religião que afirma professar. Conhecimento capaz de retirar alguém da sombra da ignorância e lhe dar autonomia reduz o controle de líderes sobre uma alma perdida. O que muita gente de Deus tem pavor só de imaginar.

"Ah, mas a maioria do país é católica! É nosso direito!" Não, não é.

E não sou eu quem afirma isso, mas sim um sábio de barba – neste caso, Jesus Cristo, não Karl Marx. No Evangelho atribuído a Mateus, capítulo 22, versículo 21: "Dai, pois, a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus".

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.