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Leonardo Sakamoto

Justiça considera Zara responsável por caso de trabalho análogo ao escravo

Leonardo Sakamoto

15/04/2014 09h21

A tentativa da Zara de anular na Justiça os autos de infração da fiscalização que resultou na libertação de 15 trabalhadores em condições análogas às de escravos em 2011 fracassou na primeira instância. O juiz Alvaro Emanuel de Oliveira Simões, da 3ª Vara do Trabalho de São Paulo, negou recurso da empresa nesse sentido e cassou uma liminar que impedia a inserção no cadastro de empregadores flagrados mantido pelo Ministério do Trabalho e Emprego e pela Secretaria de Direitos Humanos, a chamada "lista suja" da escravidão. À decisão, cabe recurso.

A Zara não havia sido incluída na "lista suja" mas, preventivamente, pediu e obteve uma liminar para evitar que isso acontecesse. Se não conseguir uma nova decisão favorável, ela estará à disposição para ser relacionada em uma próxima atualização do cadastro, o que regularmente tem acontecido a cada seis meses, em junho e dezembro.

Em sua sentença, o magistrado afirma que, como defendido pela Advocacia-Geral da União, a empresa tem sim responsabilidade direta pela situação constatada, critica a tentativa da Zara de caracterizar os costureiros resgatados como empregados da empresa intermediária Aha e classifica a maneira como a terceirização dos trabalhadores foi registrada como "fraude escancarada". A matéria é de Daniel Santini, da Repórter Brasil:

boliviana

Costureira boliviana resgatada enquanto produzia roupas para a Zara (Bianca Pyl/Repórter Brasil)

Da Espanha,  Raúl Estradera, porta-voz da Zara, afirmou à Repórter Brasil que a empresa vai recorrer da sentença. "É mais um passo em um processo judicial que vai ser longo. Com todo respeito à decisão, entendemos que não foram considerados nossos argumentos e que não tivemos oportunidade de nos defender de forma adequada", afirma, insistindo que a responsabilidade é da empresa intermediária. "Foi essa empresa que realmente cometeu as irregularidades, e obteve o lucro com isso. Eles que deveriam estar sendo punidos. Nós temos tomado ações de responsabilidade social, inclusive colaborando com entidades públicas e do terceiro setor em um esforço para melhorar as condições de trabalho não só nas nossas cadeias produtivas, mas no Brasil em geral."

"A decisão é bem fundamentada e certamente configurará um divisor de águas na discussão sobre a responsabilidade jurídica por condições de trabalho em cadeias produtivas", afirma Renato Bignami, coordenador do programa de Erradicação do Trabalho Escravo da Superintendência Regional do Trabalho, que ressaltou a importância de o relatório de fiscalização reunir documentos e provas detalhando a situação. "O juiz leva em consideração todos os argumentos apontados pelos auditores na sua decisão", ressalta.

Subordinação camuflada – Apesar dos argumentos e da tentativa de transferir a responsabilidade para a intermediária, para a Justiça do Trabalho não houve dúvidas do envolvimento da Zara. A sentença aponta que a Aha foi contratada para minimizar custos e burlar a legislação trabalhista. "A fraude da intermediação é escancarada, pois, na verdade, houve prestação em favor da vindicante com pessoalidade, não eventualidade, remuneração e subordinação econômica", diz a decisão, que ressalta que "a subordinação, embora camuflada sob a aparência de terceirização, era direta aos desígnios da comerciante das confecções". O texto destaca ainda "que a fiscalização verificou, outrossim, que as oficinas onde foram encontrados trabalhadores em condição análoga à de escravidão labutavam exclusivamente na fabricação de produtos da Zara, atendendo a critérios e especificações apresentados pela empresa, recebendo seu escasso salário de repasse oriundo, também exclusivamente, ou quase exclusivamente, da Zara".

O argumento de que a Zara não tinha conhecimento da situação a que os trabalhadores estavam submetidos também é refutado na decisão. "A Aha não tinha porte para servir de grande fornecedora, e disto ela [a Zara] estava  perfeitamente ciente, pois, realizando auditorias sistemáticas, sabia do extenso downsizing realizado, com o número de costureiras da Aha caindo mais de 80%, ao tempo em que a produção destinada à Zara crescia", diz a sentença. "A Zara Brasil Ltda. é uma das maiores corporações do globo em seu ramo de negócio, custando crer, reitere-se, que tivesse controles tão frouxos da conduta de seus fornecedores, mostrando-se muito mais palatável a versão defendida pela fiscalização, de que, na realidade, controlava-os ao ponto de deter a posição de empregadora."

Na sentença, o juiz também critica o fato de a empresa alegar, ao tentar negar a responsabilidade por trabalho escravo, que tem contribuído com o poder público e com ações sociais, chamando a atenção para o fato de o Termo de Ajustamento de Conduta firmado junto com o Ministério Público do Trabalho ter sido assinado meses após o resgate. "A celebração de TAC com o Ministério Público do Trabalho, embora louvável, foi posterior à autuação, não implicando, logicamente, nenhuma influência no resultado da lide, por não convalidar situação pretérita", diz o texto, destacando que o investimento em ações sociais estava diretamente relacionado à preocupação em recuperação da marca. "Chega a ser insólito, de outra banda, o longo discurso derredor de conduta da entidade capitalista, igualmente posterior à lavratura dos Autos e igualmente desinfluente para o deslinde desta contenda, no sentido de prática de ações de certa repercussão social, cujo objetivo primordial foi, sem dúvida, a recuperação da imagem da marca, imensamente desgastada pela repercussão dos resultados da fiscalização na mídia."

"Lista suja" – Na sentença, o juiz reforça ainda a importância do cadastro de empregadores flagrados, a "lista suja", e reafirma sua legitimidade. Ele escreve: "Diversos dispositivos legais fornecem o alicerce para a edição da Portaria nº 2, de 12 de maio de 2011 [que rege o cadastro], merecendo destaque a própria Constituição da República, que erige em princípios fundamentais o valor social do trabalho e a dignidade da pessoa humana, e consagra, desde seu preâmbulo, o direito à liberdade, e todos esses princípios estariam sendo vilipendiados se acatada a tese da postulante".

No recurso que foi rejeitado na sexta-feira, a Zara questionava a própria existência da "lista suja", posicionamento extremo que levou a empresa a ser suspensa do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, que reúne mais de 400 empresas, 30% do PIB nacional no combate a esse crime.

A decisão judicial é relativa ao processo nº 0001662-91.2012.502.0003 e foi proferida em 11 de abril. Leia a sentença na íntegra.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.