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Leonardo Sakamoto

Por uma sociedade que saiba a diferença entre ficção e realidade

Leonardo Sakamoto

15/07/2014 12h39

Nas últimas semanas, escrevi três posts que abusaram da ironia e do sarcasmo que já aparecem normalmente neste espaço, mas de forma mais tímida. Causaram um certo alvoroço.

Foram textos "ficcionais" para questionar teorias conspiratórias ou criticar o comportamento do poder público e que acabaram gerando algumas cenas insólitas aqui do lado de fora da internet. Como um desconhecido senhor me questionando em um restaurante, reclamando que eu estava protegendo políticos corruptos ao não revelar as "provas" que citei em um dos textos.

Respondi a única coisa possível naquela hora: desculpe, o ET de Varginha levou tudo. Tudo.

Não vim aqui apertar a tecla SAP do blog, mas fazer algumas reflexões.

Primeira reflexão: a fé. Há mais gente de bom coração que acredita literalmente no que lêem na internet sem questionar do que eu imaginava. Então, considerando esse imensurável poder conferido a nós comunicadores, peço que atentem-se para a frase abaixo:

O céu não existe e o inferno também não.

Pronto. Uns 90% dos problemas da civilização ocidental estão resolvidos se vocês levarem isso a sério. #ficadica

Segunda reflexão: o que leva alguém a ler um texto, que é uma ficção, e achar que aquilo é realidade?

Poderia aqui questionar o que é ficção e o que é realidade e te oferecer para escolher entre uma pílula azul ou vermelha, mas não é o caso. Não vou descer mais na filosofia de botequim do que já estou indo.

Considere-se que ninguém é obrigado a ter os mesmos referenciais que você. E se o texto apenas flerta com a ficção e usa forma ou conteúdo jornalísticos, entendo a dificuldade. Não tem comunidades de fuinhas que, até hoje, acreditam que a Bruxa de Blair foi um fato real?

Até porque, seja na esquerda, seja na direita, há tanta "ficção" sendo produzida no jornalismo, principalmente em períodos pré-eleitorais que vocês ficariam surpresos. Ou não, como diria Caetano.

Mas quando a ficção é escrachada e subverte fatos cotidianos ou mesmo a história conhecida do seu país, botar fé naquela ficção significa que você pode estar precisando se informar um pouco mais.

Quando digo que a Barra da Tijuca será desmembrada do restante do país e entregue para a CBF como um país autônomo, será que isso é verdade? Pense bem, faça aquele esforço. Compare com o que você aprendeu na escola. Faz sentido?

Nem todo mundo está acostumado a absorver informações ficcionais com estética jornalística, seja ela narrativa ou analítica.

O interessante é que não são os mais jovens, entre os meus leitores, que apresentam esse "problema". O que prova que a leitura dos livros do bruxinho com problemas de autoafirmação não levou a ninguém a saltar de um edifício montado em uma vassoura em busca de um pomo dourado. Mas os mais velhos sim. Tenho medo de imaginar que alguém ache realmente que Memórias Póstumas de Brás Cubas foi escrito por um presunto.

E, falando nisso, terceira reflexão: a interpretação de texto não está vilipendiada. Ela, na verdade, foi mordida por um figurante de Walking Dead e está por aí, morta-viva, querendo fazer um lanchinho da razão a todo o momento.

Não estou falando de ironia porque, afinal de contas, o milagre é que ironia seja entendida e não o contrário, dado que quem lê na internet não compartilha, necessariamente, dos mesmos elementos simbólicos que quem escreveu.

Também não estou falando de quem não teve acesso a uma educação de boa qualidade. Há pessoas que nem sabem que o ser humano já foi à lua quanto mais compreender figuras de linguagem.

O problema é que chequei os perfis de alguns dos leitores (#sakamotobisbilhoteiro), do tipo que interpreta "vovó viu a uva" como "vovó é comunista e come uva porque não há criancinhas disponíveis" ou "vovó é uma porca capitalista que come uvas enquanto o mundo passa fome".

Percebi que, na verdade, esse pessoal lê, mas não faz um esforço mínimo (ei, estou dizendo mínimo meeeeeeesmo porque essa titica aqui é o Blog do Sakamoto e não Finnegans Wake) para abstrair e entender o que foi lido. Interpretam da forma que querem ou usam a leitura apenas para reunir subsídios a fim de justificar a sua limitada visão de mundo. Não estão abertos a trilhar novos caminhos, concordando ou discordando.

O que me leva às seguintes sugestões: Assistam menos novela (a Globo deu uma mãozinha colocando no ar "Em Família", que ajuda muito a desligar a TV) e assistam bons filmes ou leiam mais, inclusive ficção. Conversem mais com pessoas que pensem de forma diferente. Xinguem menos.

E sorriam – a vida é muito curta para se levar tanto a sério.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.