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Leonardo Sakamoto

Eu não sou preconceituoso, mas sabe como é...

Leonardo Sakamoto

20/07/2014 11h57

Preconceito é algo gostoso, né? Descer a ladeira na banguela da razão sem precisar usar os neurônios, falando abobrinhas sobre outras pessoas, negando os direitos mais básicos – sem, ao menos, se dar ao trabalho de conhecê-las.

Mas uma dica: preconceito tem que ser dito, repetido e aplicado com na-tu-ra-li-da-de. Diluído no dia a dia, aparece como uma forma de manter a ordem das coisas e de lembrar quem manda e quem obedece. Vira uma espécie de regra silenciosa com a qual a sociedade opera, explica-se e define-se. E, o melhor: dessa forma, todo mundo esquece como ele surgiu.

A pedidos, estou retomando e ampliando uma lista aqui já publicada. Pois cabe muita abobrinha em um "Eu não sou preconceituoso, mas…" já que ele se tornou o novo "Amar é…", presente naqueles livrinhos simpáticos da minha infância.

Eu não sou preconceituoso, mas baiano é fogo. Quando não faz na entrada faz na saída.

Eu não sou preconceituoso, mas eu paguei caro por isso aqui.

Eu não sou preconceituoso, mas mulher no volante é um perigo.

Eu não sou preconceituoso, mas que caráter pode ter alguém que nasceu naquela favela?

Eu não sou preconceituoso, mas tenho medo desses escurinhos mal encarados qe pedem dinheiro no semáforo.

Eu não sou preconceituoso, mas cigano é tudo vagabundo.

Eu não sou preconceituoso, mas os gays podiam não se beijar em público. Assim, eles atraem a violência para eles.

Eu não sou preconceituoso, mas acho o ó ter um terreiro de macumba na nossa rua.

Eu não sou preconceituoso, mas é aquela coisa: não estudou, vira lixeiro.

Eu não sou preconceituoso, mas não gostaria de ver minha filha casada com um negro. Não por ele, é claro, mas os filhos deles sofreriam muito preconceito.

Eu não sou preconceituoso, mas esses sem-teto são todos vagabundos.

Eu não sou preconceituoso, mas chega de terra para índio, né? Se eles ainda produzissem para o país, mas nem isso acontece.

Eu não sou preconceituoso, mas uma pessoa que não é temente a Deus, não pode ter bom coração.

Eu não sou preconceituoso, mas se a polícia prendeu é porque alguma culpa tem.

Eu não sou preconceituoso, mas esses mendigos deviam ir para a periferia onde não incomodariam ninguém.

Eu não sou preconceituoso, mas sabe como é esse pessoal de esquerda. É tudo corrupto.

Eu não sou preconceituoso, mas sabe como é pessoal de direita. É tudo corrupto.

Eu não sou preconceituoso, mas São Paulo é São Paulo, né amiga? Não é Fortaleza.

Eu não sou preconceituoso, mas se a mina tava vestida daquele jeito é porque era uma vagabunda e mereceu o que levou.

Eu não sou preconceituoso, mas esse aeroporto tá parecendo uma rodoviária.

Eu não sou preconceituoso, mas esse shopping já foi melhor quando só aparecia gente selecionada.

Eu não sou preconceituoso, mas sobe o vidro, amor. Você não tá nos Jardins.

Eu não sou preconceituoso, mas bandido não tem conserto.

Eu não sou preconceituoso, mas o Brasil que trabalha se chama São Paulo.

Eu não sou preconceituoso, mas só fracassado fuma maconha.

Eu não sou preconceituoso, mas gente de bem não fica na rua até tarde da noite.

Eu não sou preconceituoso, mas trabalhador honesto não faz greve.

Eu não sou preconceituoso, mas esse negócio de não ter carro é coisa de hippie.

Eu não sou preconceituoso, mas vocês não acham que essas médicas cubanas têm cara de empregada doméstica?

Eu não sou preconceituoso, mas jornalista que não é imparcial não presta. Gente como o Sakamoto só fomenta o ódio.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.