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Leonardo Sakamoto

Você foi ao velório? Ué, mas não vi fotos suas nas redes sociais...

Leonardo Sakamoto

18/08/2014 07h36

A maioria dos que vão a um velório quer prestar homenagens à pessoa que faleceu e solidariedade à família e aos amigos. Outros comparecem para verem e serem vistos. Sem contar os que são guiados pela mera curiosidade.

Um grupo, contudo, vai a velórios de gente conhecida porque quer fazer parte de algo sobre o qual toda a mídia está falando – mesmo que a pessoa não lhe significasse nada em especial. Querem ir para poderem dizer "estive lá". Foi assim com parte dos que visitaram nomes como Ayrton Senna ou Roberto Marinho, cujas mortes, como a de Eduardo Campos, foram intensamente cobertas por veículos de comunicação por diferentes razões.

Para muitos destes, a certificação da presença se dá através da postagem de uma foto nas redes sociais. Se possível, com uma selfie que é para não deixar margem de dúvida. Caso não mostre a foto a ninguém, o esforço de ter ido ao velório não fará sentido algum. Pois, para essa pessoa, a constatação de que aquilo foi real depende de validação externa, a partir do momento em que sua imagem for atestada coletivamente por "likes".

Ou, além: se você não fotografou e/ou não postou é porque não esteve lá. E estar "lá" conecta com o mundo naquele momento, coloca você no lugar quentinho que é o sentimento de pertencimento. Afinal, o mundo inteiro está falando de "lá".

Não estou dizendo que isso esvazia a experiência individual e coletiva de viver a catarse causada por um velório de massa. Também não estou afirmando que existe apenas uma forma de expressar o luto e respeito. Mas esse tipo de comportamento, muito típico das chamadas "gincanas digitais", transforma essa experiência em algo novo.

É possível fazer uma analogia com o comportamento em museus e exposições, por exemplo. Será que as pessoas que visitam esse locais fotografando compulsivamente tudo o que aparece pela frente, ziguezagueando feito uma barata que cheirou uma carreira de coca, realmente se lembram do que viram um mês depois? Ou conseguiram dialogar com o artista? Será que ao menos elas estavam lá?

Pior do que sair fotografando obras de arte de forma alucinada é gravar shows inteiros de música no celular. Perde-se o show para, depois, subir um vídeo tosco no YouTube a fim de validar a presença da pessoa publicamente.

Enfim, capturar é mais importante que sentir em um mundo em que ter é mais relevante que ser. A impressão é que a memória vai sendo transferida, paulatinamente, da cabeça para cartões SD, tornando-nos cada vez mais dependentes deles para recriar nossas vivências.

O mesmo se aplica a viajar. Para muitos, conhecer uma nova realidade é ir ticando uma lista de ícones – "pronto, já vi" – derivados de guias simplistas ou matérias de turismo duvidosas que reforçam a caça ao tesouro. Sem considerar, é claro, uma vida inteira de bombardeio de padrões pela mídia, em programas de auditório ou comerciais de TV, que deixavam claro que se foi à Roma e não visitou a Basílica de São Pedro (mesmo que ache aquilo um porre), você não viu nada, é um pária social.

Quantos têm coragem de dizer não e fugir da manada? Quantos conseguem alterar a programação a qual foram submetidos por anos?

Quantos percebem que a vida basta em si mesma, sem necessidade de validação?

Em tempo: Estou com aquele sentimento de vergonha alheia pelos petistas e tucanos que estão espalhando fotos de um sorriso de Marina Silva no velório como se ela estivesse curtindo demasiadamente aquele momento. Vocês têm titica na cabeça? Pelamordedeus, cresçam. Cada vez mais acho que o Brasil não chega até o final de outubro.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.