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Leonardo Sakamoto

Ele ficava lá, parado, estático, imóvel, olhando a urna eletrônica

Leonardo Sakamoto

06/09/2014 16h29

Uma amiga, que será mesária nessas eleições, me ligou para saber como funciona esse trampo cívico, uma vez que já exerci o papel algumas vezes. Sim, tive meus dias de glória junto à urna eletrônica. É claro que a primeira convocação foi um tanto quanto dramática, feito reservista que é chamado à guerra. Do tipo: "minha vida [aos domingos de eleição] acabou". Acabou nada. Ser mesário é o melhor trabalho do mundo. Depois de jornalista, é claro. Decidi resgatar um relato que havia feito, tempos atrás, para ajuda-la a entender isso.

O local para o qual era aliciado era no Campo Limpo, bairro da zona Sul paulistana, onde cresci. De manhã, um inferno. Todo mundo aproveitava para votar cedo e provavelmente aproveitar o "feriadão" de sol na praia, assistir a corrida de Fórmula 1 ou pegar um Desafio ao Galo na TV.

Perto do meio dia, vinha a patota que escapava antes do almoço para votar – muitos trazendo, em punho, o frango com farofa ou o cupim assado e o refrigerante dois litros comprado na padaria da esquina. Creio que era uma espécie de tortura para quem tinha esfiha aberta saindo pelos poros comprado pelo vale-coxinha entregue pela Justiça Eleitoral.

Lei Seca? Ninguém sabe, ninguém viu. Em toda a eleição, lá pelo meio da tarde, aparecia um senhor, do alto de seus 50 anos, com-ple-ta-men-te mamado. Quando ele despontava, cambaleante, no final do corredor, já abríamos o sorriso. Gente boa, caladão, de uma estirpe que não mais se vê por aí, entregava o título soluçando e ia para a urna.

Ficava olhando, olhando, olhando, parado, estático, imóvel. Depois começava a teclar alucinadamente. Agora vai!

Depois, parava e ficava olhando de novo. Coçava a cabeça. Pensava.

O que ele olhava? Será que, assim como alguns jogos de computador, tinha uma senha especial para acessar uma parte secreta?

Pra cima, pra cima, pra baixo, 2, 2, 1, 1, corrige, confirma, e um candidato aparecia de sunga na tela?

Estávamos em uma época em que urna eletrônica era novidade, então o pessoal queria conhecer aquela maquininha que obedecia a vontade dos dedos. Hoje, todo mundo tem um smartphone que coça as costas sozinho e faz café. Mas, na época, era o máximo de tecnologia que muitos conseguiam ter acesso.

Não podíamos interferir no processo, mas lá na fila, exaltados, a turba solicitava gentilmente nossa ação: "alguém tira esse bêbado maldito daí ou eu mesmo tiro!". Demorava algo em torno de 10 a 15 minutos.

Ao final, quieto, pegava o comprovante de votação, fazia um movimento como se baixasse a aba do chapéu em respeito, e saía, escorando a parede, lentamente, para ela não cair.

Esse negócio de novidade tecnológica rendeu outras boas, principalmente quando as mães levavam a gracinha de seus filhinhos hiperativos e autoritários para votar.

Uma delas trouxe uma doçura de menino, lá pelos seus oito anos, que ficou brincando com a urna, feito videogame. Quando ele já havia conquistado pontos o suficiente para passar de fase e comido cogumelos de força o bastante, o nosso presidente de seção, educadamente, avisou que aquilo não era brinquedo.

A mãe, enfurecida, gritou algo do tipo: "eu pago meus impostos e por isso meu filho vai brincar quanto tempo ele quiser. Brinca, filho!"

E o menino brincou. E ele viu que era bom.

Isso sem contar o pessoal que havia encucado com a propaganda do Tribunal Superior Eleitoral na TV, que usava personagens de nossa história para servir de exemplo para o uso da urna eletrônica.

Lembram disso? Tinha o fictício Partido da Música, o Partido da Literatura, e por aí vai (ah, a criatividade publicitária…) Esses eleitores queriam porque queriam votar no tal do Monteiro Lobato ou no Vinicius de Moraes. "Vocês estão me enganando. Eu quero o número daquele tal de Lobato que eu vi na propaganda." Até explicar que focinho de porco não é tomada, a fila lá fora já estava, de novo, fazendo a curva.

– Mas, minha senhora, esse aí morreu faz tempo… (rá, truco!)

– Se morreu, porque a TV mostrou, hein? (seis, marreco!)

Havia o eleitor-consciente-demais que queria, depois do voto, fazer uma declaração pública e um discurso. "Votei em ciclano porque ele…" Educadamente, vinha a explicação de que não podia fazer aquilo – o que não adiantava muito.

Esses, por incrível que pareça, eram os únicos em que a história não terminava bem. Rolou até arranca-rabo com fiscal de partido, pago para acompanhar a votação na sala. Mas não tinha jeito. O eleitor não arredava pé antes de dizer tudo o que tinha para dizer. Precisava daquele momento catártico, talvez para se convencer de que não tinha feito besteira.

E quando o sistema eleitoral redescobria os eleitores iletrados?

Resultado cuspido e escarrado de sucessivas eleições que colocaram no poder pessoas que não foram capazes (ou não tiveram o interesse) de erradicar o iletramento e não estavam nem aí para o fato de ter gente que não conseguia ler o próprio nome, quiçá enviar uma carta a um representante.

Para esses políticos, o que o povaréu precisa é conseguir reconhecer a foto quando ela salta na urna. O resto, é resto. Não podíamos dizer como os eleitores deveriam votar e alguns não tinham ideia da cara do candidato a deputado, porque era "indicação" de um amigo que trabalhava na campanha do sujeito.

"Olha, coloquei o número, mas não sei se é esse cabra, não. Vocês não podem vir aqui me dar um auxílio?" E não podíamos – pelo menos a gente achava que não podia. E dava uma paúra no estômago perceber a vergonha deles ao ter que sujar o dedo com o carimbo azul da "assinatura".

Que fazia tom sobre tom no azul cimento que impregnava a roupa de alguns, provavelmente pedreiros e serventes em horário de almoço de uma obra lá por perto. "Bonita essa eleição, né, moço? Graças a Deus que a gente vive num país em que a gente pode participar disso, né, moço?"

Dava vontade de pedir desculpas a eles. Pelo quê? Por tudo.

No final do dia, o extrato impresso dos mais de 500 votos da urna batia com o resultado da votação no restante do país, do estado e do município. Mostrava que aquilo ali era, realmente, um pedacinho representativo de tudo.

Moral da história? Nenhuma.

Ou melhor, respeite o mesário. Amanhã, ele pode ser você.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.