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Leonardo Sakamoto

Chamar de "bicha", em nossa sociedade machista, é discriminatório, sim

Leonardo Sakamoto

13/09/2014 13h42

Caio Rocha, presidente do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), afirmou que não vê discriminação em torcedores chamarem de "bicha" jogadores que são heterossexuais. De acordo com o Painel FC, da Folha de S. Paulo, esses gritos seriam, para ele, uma "ofensa" e não uma "discriminação" – passível de punição mais severa. Ele diz que "o ato discriminatório tem que ser direcionado a pessoas com características diferentes às do autor da ofensa".

Essa discussão é repetida neste blog, mas tendo em vista a declaração coletada pelos colegas, acho que vale resgatar o debate abaixo, já publicado aqui.

Sabemos que dizer que alguém é "gay" ou "lésbica" em uma sociedade heteronormativa e machista como a nossa pode carregar uma montanha de intenções negativas e discriminatórias.

O significado não passa apenas pela orientação sexual, mas todo um pacote de comportamentos fora do padrão que foram equivocadamente imputados a esses grupos ao longo do tempo.

O que não é aleatório, mas sim uma forma de separar o certo e o errado, o quem manda e quem obedece, ditados pelo grupo hegemônico. Como as piadas, que existem em profusão para rir de gays, travestis, negros, mulheres, terreiros, pobres, imigrantes e raramente caçoam de pessoas ricas ou famílias de comerciais de margarina na TV.

Mas imagine se isso não acontecesse, se a orientação sexual ou identidade de gênero de uma pessoa não fizesse diferença alguma porque, na prática, não faz mesmo. Se assim fosse, caso alguém dissesse que um jogador de futebol é gay, ninguém se abalaria.

O ator George Clooney que, vira e mexe, tem a sexualidade tornada motivo de pauta pela imprensa sensacionalista, afirmou que não desmentia os boatos de que seria gay porque isso seria uma atitude grosseira com seus amigos gays e com os homossexuais em geral. Pois ser gay não é algo ruim ou vergonhoso e, para ele, não faz diferença se pessoas ficam em dúvida quanto a sua orientação sexual.

É claro que as torcidas de futebol, quando entoam coros chamando determinados jogadores de "bicha", que é um termo depreciativo, têm o intuito de transformar uma orientação sexual em xingamento. Reforçam, dessa forma, que ser "bicha" é ser ruim, ser frouxo, medroso, incapaz e tantos outros elementos acrescidos ao significado falsamente aos gays ao longo do tempo.

Nesse caso, o uso da expressão não está atacando apenas o jogador (independentemente da orientação sexual do esportista), mas toda a coletividade, pois reforça preconceitos e questiona a dignidade de determinado grupo.

Fazendo um paralelo simples: um estádio inteiro gritando que um jogador negro é "negro" (atenção: não estou nem falando de praticar a ignomínia de xingar de "macaco") não é simples observação da realidade, mas quer passar um recado cuja intenção é péssima.

Assume uma conotação diferente do significa original da palavra, com um significado bem distante de gritar que um jogador branco é "branco". Pois sabemos bem que a sociedade dá pesos diferentes a negros e brancos e que o racismo ainda grassa por aqui, apesar de nossa cegueira coletiva.

Nesse sentido, creio que gritar "bicha" em um estádio assume sim um sentido não apenas ofensivo, mas também discriminatório e deveria ser analisado com rigor pela Justiça, aplicando punições didáticas para o clube da torcida em questão.

Gostaria muito de estar vivo para chegar ao dia em que tudo isso seja tão normal que passe batido. Talvez, nesse mundo futuro, ninguém se sinta ofendido ou ofenda por algo que deveria suscitar o mesmo debate que o tom do branco do olho.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.