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Leonardo Sakamoto

Ei, classe média! Dá para viver deixando o carro na garagem

Leonardo Sakamoto

16/09/2014 10h41

Quando vendi meu carro, anos atrás, amigos mais chegados se preocuparam com minha existência.

– Mas assim, tão de repente?
– Também estranhei. Ele era tão apegado.
– Olha, não vai aguentar viver sem.
– Também acho. Teremos que estar lá para dar o apoio que precisa. Teremos que ser fortes por ele.

Eu era do tipo que fazia tudo usando automóvel. Não, não do tipo patológico, que tem medo da cidade e pega o carro para ir à padaria, à academia ou ao supermercado, que ficam a duas quadras de distância. A esse tipo, o meu desprezo eterno e um beijinho no ombro. Mas, sabendo que teria um carro à disposição, programava minha vida com reuniões em cantos diferentes da cidade e fora dela, visitava amigos que moravam longe e ia com eles botecar onde quer que fosse. Por que? Porque eu podia, oras! Estava de carro!

Veja a cobertura especial do UOL da Semana da Mobilidade

Para entender o "Sakamotor", vamos voltar alguns anos. Fiz o ensino médio na então Escola Técnica Federal de São Paulo, que fica na zona norte, enquanto morava no Campo Limpo, na zona sul. Entre caminhada, metrô e ônibus, eram, pelo menos, duas horas para ir e o mesmo tanto para voltar. Isso sem contar o calor humano de conduções lotadas em dia de chuva e a sensação de completo perdedor ao cochilar e acordar no ponto final do Jardim Macedônia ou do Parque Ipê (abraço para galera do Ipê!) já tarde da noite.

Tinha seu lado lúdico, é claro. Quando você perde o medo do transporte coletivo e entende como ele funciona, mesmo no alto da precariedade do começo dos anos 90, a cidade vira seu quintal. A Cidade Ademar e a Cidade Tiradentes tornam-se alcançáveis, da mesma forma que São Miguel Paulista, São Mateus e Santo Amaro. Ao mesmo tempo, a minha casa no Campo Limpo vivia cheia de amigos de todos esses lugares.

Era a época do mercado negro de passes de ônibus. Quem nunca trocou dois passes escolares por um churrasco grego com suco grátis no ponto final da Estação da Luz que atire o primeiro hambúrguer gourmet.

Mas essa vida cansa. Ficar sem grana por qualquer motivo (como ter comprado dois churrascos gregos na Luz…) levava à gincana de convencer o cobrador a deixar passar por baixo da catraca. E eu não era exatamente um cara magrelo. Na faculdade, portanto, assim que tirei a carta fiz de tudo para ter um carro e, com ele, mais conforto.

Deparei-me, então, com um novo tipo de pessoa. O Revolucionário com a Cabeça Alheia (para não falar de outra parte do corpo). Por mais que defendesse com unhas e dentes o transporte coletivo, ficava irritado com alguns amigos que sempre viveram na região mais nobre da cidade quando culpavam o tiozão da fuqueta 69 ou do 147 tunado pelo trânsito ser como era. "Ah, essas pessoas deveriam ser mais conscientes e deixar o carro delas em casa, pois o trânsito está impossível." Quando questionadas se não seriam eles que teriam que abandonar primeiro os seus carros na garagem (afinal, o transporte coletivo já era razoável para quem vivia nessa região central, como qualquer outro serviço público), faziam cara de nojinho. Gente pobre? Cruzes…

Quando me mudei para o Principado do Sumaré, que reúne boa parte de nós, da esquerda caviar paulistana, mantive carros de forma intermitente por um tempo ainda. Meu derradeiro – e grande amor sobre rodas – foi um jipe Willys 1964, azul perolado, com capota conversível. Não era um carro, era uma entidade. Mas, quatro canecos, bebia feito um condenado. Além de me deixar mais pobre a cada acelerada, fazia do planeta um lugar pior para se viver. Não nego que a culpa ambiental foi um dos grandes motivos que me levou a deixar que esse bêbado caísse no mundo para nunca mais voltar.

Essa caminhada me levou até o seguinte pensamento: minha vida precisa de um carro. Mas se eu invertesse a lógica e fizesse a minha vida caber no fato de que não tenho carro?

Na tentativa e erro, fui me adaptando. Tentar manter os empregos o mais próximo possível de casa, ajuda, mas não resolve – afinal passo mais tempo na rua do que no escritório ou na sala de aula. Daí, montei um pacote multimodal de mobilidade.

Para ir dar aula ou chegar em lugares que ficam a cinco quilômetros de distância (às vezes, mais), uso bicicleta regularmente. Esse limite tende a aumentar à medida em que as ciclovias forem se espalhando por essa cidade cheia de malucos que acham que bike é aquele alvo móvel de parque de diversão.

Nas primeiras tentativas, chegava com uma pizza em embaixo de cada braço e pegajoso feito goiabada cascão. O Sumaré é um bairro de altos e baixos, por assim dizer.

Acabei comprando uma bicicleta elétrica. Mas, paradoxalmente, senti o preconceito de alguns ciclistas que têm uma visão um pouco estreita da coisa: de que sem esforço, não vale. Ah, gente, vocês acham que só o Malafaia é fundamentalista? Sofri bullying em loja de bicicletas, tempos atrás, ao perguntar se tinha um modelo com bateria. "Nós vendemos bicicleta e não mobilete. Sai dessa! Subida se enfrenta nas pernas, meu irmão." Saí de lá me sentindo a titica do cavalo do bandido.

Mas, então, descobri que, na China, elas são uma febre. E, na Europa, vêm ganhando espaço rapidamente, conquistando aqueles que, como eu, queriam usar bicicleta para se deslocar, mas não chegar meladão no trabalho.

A bicicleta elétrica dá assistência, principalmente nas subidas, fazendo com que uma ladeira seja tão fácil de vencer quanto um caminho plano. Mas não anda sozinha – tem que pedalar. É bem mais cara que uma bike normal, mas se os bancos criassem linhas de financiamento a longo prazo com juros ridículos ou se o governo cortasse impostos como faz com os carros, seria uma opção viável para muita gente.

Hoje até vou de terno para algumas reuniões usando bicicleta.

Para deslocamentos mais longos que estejam perto do ramal do metrô ou do trem, utilizo esses transportes de massa, normalmente pegando um ônibus ou indo de bicicleta até a estação. Para o centro da cidade e outros destinos em que exista uma faixa exclusiva, prefiro obusnao.

Só quem não depende de ônibus (atenção, depender é diferente de pegar eventualmente) é que tem a pachorra de criticar a criação das faixas. É claro que elas podem ser aprimoradas, mas os moradores da cidade precisam aprender que são pessoas e não carros que mandam por aqui.

Um das sacadas mais legais que São Paulo importou foi o carsharing, um sistema de aluguel de carros por hora. Você se torna assinante do serviço, pagando uma taxa por mês, e tem acesso a dezenas de veículos em estacionamentos espalhados em bairros da cidade. Reserva o carro pela internet, dizendo quanto tempo ficará com ele, depois vai ao local, destrava o modelo que escolheu com um cartão e, pronto, é só usar. Depois paga pelas horas utilizadas e pela quilometragem e devolve ao mesmo lugar. O combustível é a empresa que fica responsável por pagar.

Muito útil para fazer compras, levar alguém para jantar ou fazer deslocamentos em curto espaço de tempo para locais não tão abastecidos por metrô e ônibus. Aos finais de semana, por exemplo, quando quero levar algo para meus pais, pego o serviço e vou até o Campo Limpo.

Por fim, o táxi. Viajo bastante a trabalho, então a saída é ir de táxi até o aeroporto – seja direto de casa, seja em estações mais próximas ao aeroporto, enquanto o poder público não termina o monotrilho até Congonhas e não constrói o trem rápido para Cumbica.

E, é claro, em dias de balada, porque voltar dirigindo depois de ter bebido é coisa de desmiolado.

Não tenho saudades do carro. Mentira, tenho saudades do meu jipe sim. Aliás, se alguém encontrar ele por aí, diga que posso até me casar de novo, mas o grande amor da minha vida motorizada é ele.

Mas por enquanto não preciso de um. Ando bastante pela cidade, mas sou solteiro. Daqui a um tempo, com família, talvez precise de um novamente para algumas necessidades.

O problema não é ter carro, mas gravitar toda a sua vida em torno do fato de ter um, transferindo a ele não apenas o caminho para a felicidade ou a condição necessária para o pertencimento social, mas a organização do seu cotidiano. Sem repensar isso, fica difícil diminuir a sua importância relativa usando outros meios de transporte – na medida do possível e dependendo de onde você viva, é claro.

Contei essa história não para mostrar como virei um hippie, até porque estou longe disso. Mas para convencer pessoas da classe média que, como eu, vivem em regiões abastecidas por estações de metrô, boas linhas de ônibus, estações de carsharing e, finalmente, ciclovias. Quando não se usa transporte público ou bicicleta, você se engaja menos para forçar os eleitos a melhorar a qualidade dos serviços públicos.

Ah, você é daqueles que acham que o problema da mobilidade de uma grande cidade se resolve abrindo mais avenidas, pontes e túneis? Sabe de nada, inocente!

E não precisa deixar o carro em casa por causa de uma modinha de uma data ou porque um japonês doido disse que é legal ter contato com as pessoas ao invés de ficar em uma bolha. Faça porque isso vai diminuir o trânsito, trânsito do qual você faz parte, e te dar mais horas para curtir a sua vida.

Mas se isso for indiferente para você também, meu último argumento: eu gasto muito, muito, muito pouco para me deslocar por São Paulo, mesmo a lugares distantes. E você?

Post produzido especialmente para a cobertura da Semana da Mobilidade do UOL, quando várias cidades do mundo realizam atividades em torno do Dia Mundial Sem Carro (22 de setembro).

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.