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Leonardo Sakamoto

Mentira. Não está faltando água em São Paulo

Leonardo Sakamoto

24/09/2014 10h47

O paulistano é bicho engraçado. Escolhe uma esfera de poder (federal, estadual ou municipal) e torce por ela loucamente, defendendo-a com unhas e dentes e eximindo-a de responsabilidade pela responsabilidade que efetivamente tem. É um amor incondicional a grupos no poder que tenho uma certa dificuldade em entender.

– Tá rolando racionamento de água lá em casa dia sim, dia não.
– Não está faltando água em São Paulo.

– Uma batida da polícia espancou o filho de uma vizinha que estava voltando do trabalho porque o confundiu com um traficante.
– A polícia não age assim. Se apanhou, é porque era bandido.

– Uma amiga está na fila da creche até agora e não conseguiu vaga.
– Não faltam vagas em creches. Ela não procurou direito.

– A moça que trabalha lá na empresa está na oitava série e mal sabe ler.
– Culpa dela que não estudou direito.

– Só consegui marcar uma consulta com o cardiologista do hospital público para novembro.
– Devia ter agendado antes.

– Mais uma favela queimou e os moradores não têm para onde ir.
– Se não consegue pagar, não more na cidade.

– A criançada tá brincando do lado do córrego que é um esgoto a céu aberto. Vão pegar uma doença.
– Certos pais deveriam perder a guarda das crianças.

– Eu ralei o joelho ao cair da bicicleta por conta de um buracão no asfalto.
– A culpa é sua, a rua é para carros.

– Não dá para entrar no trem ou em ônibus em horário de pico.
– Dá sim.

– Falta luz no meu bairro toda a semana.
– Mentira.

– Fui parado em uma blitz porque sou negro.
– Isso não existe.

– A iluminação é péssima, fico com medo de voltar sozinha à noite.
– Mentira.

– Nessas noites frias, dá dó desse pessoal que dorme na rua.
– Tá com dó? Leva pra casa.

Daí, chegamos ao principal culpado por tudo isso: você.

E não reclame. O mundo está pior exatamente por conta de gente que reclama.

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.