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Leonardo Sakamoto

Se for eleito, vou botar esses vagabundos de 12 anos para trabalhar

Leonardo Sakamoto

12/10/2014 17h01

O trabalho pode fazer parte da formação pessoal, desde que não afete o crescimento do indivíduo. É legalmente autorizado a partir de 14 anos como aprendiz ou de 16 em qualquer outra atividade que não seja perigosa ou insalubre.

Muitas empresas, contudo, já utilizam jovens de 15 anos para fazer atividades de gente de 18. Usam como justificativa que treinam para o futuro mas, na verdade, usam mão de obra barata. Como todos sabemos, o futuro dos ricos é administrar, medicar, planejar. O dos pobres, fritar, estocar, limpar. Imagine, então, se houvesse a anuência constitucional para baixar a idade…

Com menos tempo para se dedicarem a seu crescimento e ao desenvolvimento de consciência sobre o mundo e si mesmas, as crianças tornam-se adultas que sabem o seu exato lugar na sociedade e trabalharão duro para o crescimento do país, mas sem refletirem sobre seus direitos e sem criticarem seus chefes e governantes por péssimas condições de vida.

O tema do trabalho infantil praticamente passou ao largo das eleições. Mas tenho certeza que se algum candidato ou candidata, em um rompante de sinceridade, defendesse os projetos de lei que correm no Congresso Nacional sugerindo a redução da idade mínima de 14 para 12 ou dez anos, ganharia a simpatia popular.

Parte dos trabalhadores que adentraram a linha do consumo adota com facilidade o discurso de que "só o trabalho liberta".

Conquistaram algo com muito suor e têm medo de perder o pouco que têm, o que é justo e compreensível. Mas isso tem consequências.

Em pesquisas de opinião sobre políticas de habitação, por exemplo, quem tem pouco abraça por vezes um discurso violento, que seria esperado dos grandes especuladores urbanos e não de trabalhadores. Afirmam que, se eles trabalharam duro e chegaram onde chegaram sozinhos, é injusto sem-teto, sem-terra ou indígenas consigam algo de "mão-beijada" por parte do Estado.

Ignoram que o que é defendido por esses excluídos é apenas a efetivação de seus direitos fundamentais: ou a terra que historicamente lhes pertenceu ou a garantia de que a qualidade de vida seja mais importante do que a especulação imobiliária rural ou urbana.

E que dignidade não é algo que tem que ser conquistado a duras penas através do esforço individual, mas faz parte do pacote de direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais que você deveria ter acesso simplesmente por ter nascido. Ignoram porque aprenderam que as coisas são assim.

Isso é muito comum quando tratamos de trabalho infantil. Surgem leitores bradando: "eu trabalhei desde cedo e isso moldou meu caráter"; "aprendi a dar valor às coisas com meu suor desde pequeno"; "crianças ou está vagabundeando ou está trabalhando". Exemplos são usados para mostrar que, trabalhar desde pequeno, é o caminho.

Na foto, duas crianças, uma de 13 e outra de 14 anos. Participei da operação de resgate das duas, além de outros adultos, todos em condições de trabalho escravo contemporâneo em uma fazenda de gado no Pará

Na foto, dois jovens, um de 13 e outra de 14 anos. Participei da operação de resgate de ambos, além de outros adultos, todos em condições de trabalho escravo contemporâneo em uma fazenda de gado no Pará. Acredito que discordem do mantra de que o trabalho é libertador 

Até entendo que muita gente sinta que sua experiência de superação é bonita o suficiente para ser copiada pelo filho ou filha. Mas será que não imaginam que o trabalho infantil, que atrapalha o desenvolvimento da criança, não precisa ser hereditário?

E que a luta maior é por criarmos condições para que ela tenha educação de qualidade, possa brincar e preparar para o momento em que será realmente demandada pela sociedade?

Seria ótimo se o debate eleitoral pudesse trazer o tema à luz, analisando formas de garantir que o trabalho infantil não seja um caminho necessário para que as novas gerações encontrem sua dignidade.

Propostas para reduzir a idade mínima para começar a trabalhar têm sido rejeitadas por serem consideradas inconstitucionais. A pergunta é: até quando?

Mas hoje é Dia das Crianças! Compre algo bem caro para o seu filho para provar que o ama. As outras crianças? Não é problema nosso, não é mesmo?

Sobre o Autor

É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). É diretor da ONG Repórter Brasil, conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão e comissário da Liechtenstein Initiative - Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos. É autor de "Pequenos Contos Para Começar o Dia" (2012), "O que Aprendi Sendo Xingado na Internet" (2016), entre outros.